O material apresentado nesta seção do Blog, deve ser lido e considerado em seu contexto histórico e sua relevância para a formação do pensamento político, social, e até o teológico da sociedade moderna e dos diversos momentos da história da humanidade. Isto, entretanto, não significa dizer que subscrevo todas as idéias contidas nos textos e livros aqui publicados, mas apenas que reconheço a importância que exerceram e exercem sobre a história de todo o pensamento ocidental. Creio que todos terão o discernimento e filtro característicos daqueles que possuem a mente de Cristo, levando ainda, em consideração, o ensinamento de 1 Tessalonicenses 5:21 - Examinai tudo. Retende o bem.

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sábado, agosto 26, 2006

ÍNDICE GERAL




quinta-feira, agosto 17, 2006

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo - Max Weber



01 - Apresentação e Introdução

02 - Filiação religiosa e estratificação social

03 - O Espírito do Capitalismo - Parte I

04 - O Espírito do Capitalismo - Parte II

05 - A Concepção de Vocação de Lutero

06 - Fundamento Religioso do Ascetismo Laico

  • A) O Calvinismo
  • B) O Pietismo
  • C) O Metodismo
  • D) As Seitas Batistas

07 - O Ascetismo e o Espírito do Capitalismo - Parte I

08 - O Ascetismo e o Espírito do Capitalismo - Parte II




A Riqueza das Nações - Adam Smith






sexta-feira, agosto 11, 2006

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo - Introdução

Apresentação

A ética protestante e o "espírito" do capitalismo , ensaio clássico de Max Weber (1864-1920) sobre a ética puritana e a cultura capitalista moderna, foi publicado nos anos de 1904 e 1905, na revista alemã ´Archiv für Sozialwissenschaft´. Uma segunda versão apareceria em 1920, ampliada e revista pelo próprio autor, que adicionou passagens ao ensaio, aprimorou conceitos e formulou outros -como os de desencantamento do mundo e ação racional-, fez ajustes terminológicos e incluiu numerosas notas de rodapé. Esta edição reúne num só texto as duas versões do livro de Weber: o ensaio original de 1904 e os acréscimos de 1920, A identidade dos dois textos é preservada: as passagens da segunda versão são destacadas entre colchetes, permitindo uma nova leitura àqueles que já conhecem o estudo e, uma leitura completa aos que têm o primeiro contato com ele. A nova tradução (feita do alemão), promove, assim, a retomada crítica da versão original ao aliá-la à versão definitiva, realizada na plena maturidade intelectual e pessoal do autor. O livro analisa a gênese da cultura capitalista moderna e sua relação com a religiosidade puritana adotada por igrejas e seitas protestantes dos séculos XVI e XVII: a partir de observações estatísticas, Weber constatou que os protestantes de sua época eram, de um modo geral, mais bem-sucedidos nos negócios do que os católicos. Os últimos ajustes ao estudo foram feitos no ano da morte do autor, quando o texto passou a fazer parte dos Ensaios reunidos de sociologia da religião.


Introdução -

Ao estudarmos qualquer problema da história universal, o produto da moderna civilização européia estará sujeito à indagação de quais combinações de circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilização ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como queremos crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e valor universais.

Apenas no Ocidente existe uma ciência num estágio de desenvolvimento que reconhecemos, hoje, como válido. O conhecimento empírico, as reflexões sobre o universo e a vida, a sabedoria filosófica e teológica das mais profundas não estão aqui confinadas, embora no caso desta última o pleno desenvolvimento da teologia sistemática deva ser creditado ao cristianismo sob a influência do helenismo, uma vez que dela houve apenas fragmentos no islamismo e numas poucas seitas hindus. Em poucas palavras, conhecimento e observação de grande finura sempre existiram em toda parte, principalmente na índia, na China, na Babilônia e no Egito. Mas à astronomia da Babilônia e às demais faltavam – o que torna seu desenvolvimento mais assombroso – as bases matemáticas recebidas primeiramente dos gregos. A geometria hindu não tinha provas racionais, que foram outro produto do intelecto grego, criador também da mecânica e da física. As ciências naturais da índia, embora de todo desenvolvidas sobre a observação, careciam de método de experimentação o que foi, longe de seus alvores na Antiguidade, um produto essencialmente do Renascimento, assim como o moderno laboratório. A medicina, especialmente na índia, embora altamente desenvolvida quanto às técnicas empíricas, carecia de fundamentos biológicos e particularmente bioquímicos. Uma química racional tem estado ausente de todas as áreas dá cultura que não a ocidental.

A erudição histórica chinesa, altamente desenvolvida, não possuía o método de Tucídides. É verdade que Maquiavel teve predecessores na índia; mas todo o pensamento político da índia carecia de um método sistematizado como o de Aristóteles e, de fato, de conceitos racionais. Nem todas as antecipações da índia (Escola de Mimamsa), nem as extensas codificações, especialmente no Oriente Próximo, nem todos os livros de leis da índia e de outros lugares possuíam formas estritamente sistemáticas de pensamento, tão essenciais a uma jurisprudência racional como a lei romana e o direito ocidental por ela influenciado. Uma estrutura como o cânone jurídico é conhecida apenas no Ocidente.

A mesma observação é válida no tocante às artes. O ouvido musical dos outros povos era, provavelmente, de sensibilidade até mais desenvolvida do que o nosso; e certamente não o era menos. A música polifônica de diversos tipos era amplamente distribuída sobre o planeta. Diversos instrumentos tocando em conjunto, assim como o canto de partes da música, existiram em toda parte. Todos os nossos intervalos racionais de tons eram conhecidos e calculados. Mas a música de harmonia racional tanto o contraponto quanto a harmonia, a formação do tom básico sobre três tríades com o terceiro harmônico; nossa cromática e enarmônica, não interpretadas em termos de espaço mas, desde o Renascimento, em termos de harmonia; nossa orquestra, com seu núcleo de quarteto de cordas e a organização do conjunto de sopros; nosso acompanhamento de graves; nosso sistema de notação, que tornou possível a composição e o moderno trabalho musical e, pois, a sua própria sobrevivência; nossas sonatas, sinfonias, óperas e, finalmente, nossos instrumentos fundamentais que são expressão daquelas: o órgão, o piano, o violino etc. Todas essas coisas são conhecidas apenas no Ocidente, embora a música descritiva, a poesia tonal, as alterações de tonalidade e cromáticas tenham existido como meios de expressão de várias tradições musicais.

Em arquitetura, o arco ogival tem sido usado em toda parte como meio de decoração, na Antiguidade e na Ásia; presumivelmente, a combinação do arco ogival com a abóbada em cruz não era desconhecida no Oriente. Mas o uso racional da abóbada gótica como meio de distribuição de cargas e cobertura de espaços de todas as formas e, como um princípio construtivo de grandes edificações monumentais e como fundamento de um estilo, extensivo à escultura e à pintura, como as criadas pela Idade Média, não ocorreu em nenhum outro lugar. As bases técnicas de nossa arquitetura nos vieram do Oriente. Nelas porém faltava a solução do problema da cúpula e o tipo de racionalização de toda a as artes – no caso da pintura, a utilização racional das linhas e a perspectiva espacial que o Renascimento criou. Houve a impressão na China, mas a literatura impressa, projetada apenas para a impressão e por ela possibilitada e, acima de tudo, a Imprensa e os periódicos, apareceram só no Ocidente.

As instituições de educação superior, de todos os tipos possíveis, mesmo algo semelhantes, superficialmente, às nossas Universidades, ou pelo menos, às nossas Academias, existiram na China e no Islão. Mas a busca racional, sistemática e especializada da ciência por parte de pessoal treinado e especializado existiu somente no Ocidente, num sentido que se aproxima de seu papel dominante na nossa cultura atual. Isso é verdadeiro, acima de tudo, no tocante ao funcionário público treinado, pilar tanto do Estado moderno quanto da vida econômica do Ocidente. Este constitui um tipo do qual antigamente só se encontraram sugestões, que nunca apresentaram, nem remotamente, a importância que tem no presente para a ordem social. Naturalmente o funcionário público, mesmo o especializado, é um constituinte muito antigo das mais diversas sociedades. Mas nenhuma época e nenhum país experimentaram jamais, no mesmo sentido do Ocidente atual, a absoluta e completa dependência de sua existência, de suas condições econômicas, políticas e técnicas, de uma organização de funcionários especialmente treinados. As funções mais importantes da vida diária da sociedade são desempenhadas por funcionários públicos treinados técnica, comercial, e acima de tudo legalmente.

A organização de grupos políticos e sociais era uma coisa comum na estrutura feudal. Mas mesmo o estado feudal do rex et regnum no sentido ocidental só foi conhecido na nossa cultura. Os parlamentos de representantes eleitos periodicamente, com a liderança de demagogos e chefes de partido como ministros responsáveis perante o parlamento, são peculiaridade nossa, embora naturalmente sempre tenha havido partidos no mundo todo, no sentido de uma organização que exerce influência e busca ganhar o controle do poder político. De fato, o próprio Estado, tomado como uma associação política com uma constituição racionalmente redigida, leis racionalmente ordenadas é uma administração coordenada por regras racionais ou leis, administrado por funcionários treinados, é conhecido, nessa combinação de características, apenas no Ocidente, a despeito de todas as outras que dele se aproximam.

E o mesmo é verdade também para a mais decisiva força da nossa vida moderna: o capitalismo. O impulso para o ganho, a persecução do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem, em si mesma, nada que ver com o capitalismo. Tal impulso existe e sempre existiu entre garçons, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários desonestos, soldados, nobres, cruzados, apostadores, mendigos etc... Pode se dizer que tem sido comum a toda sorte e condição humanas em todos os tempos e em todos os países da Terra, sempre que se tenha apresentado a possibilidade objetiva para tanto. É coisa do jardim de infância da história cultural a noção de essa idéia ingênua de capitalismo deva ser eliminada definitivamente. A ganância ilimitada de ganho não se identifica, nem de longe, com o capitalismo, e menos ainda com seu “espírito”. O capitalismo, pode eventualmente se identificar com a restrição, ou pelo menos com uma moderação racional desse impulso irracional. O capitalismo, porém identifica se com a busca do lucro, do lucro sempre renovado por meio da empresa permanente, capitalista e racional. Pois assim deve ser: numa ordem completamente capitalista da sociedade, uma empresa individual que não tirasse vantagem das oportunidades de obter lucros estaria condenada à extinção.

Definamos agora nossos termos com uma precisão algo maior do que a usual. Definiremos como ação econômica capitalista aquela que repousa na expectativa de lucros pela utilização das oportunidades de troca, isto é, nas possibilidades (formalmente) pacíficas de lucro. A aquisição pela força, (formalmente e de fato) segue suas próprias leis particulares, e não seria conveniente, embora não se possa proibi-lo, colocá-la na mesma categoria da ação que é, em última análise, orientada para o lucro por meio da troca. Onde a aquisição capitalista é obtida racionalmente, a ação correspondente é ajustada por cálculo em termos de capital. Isso significa que a ação é adaptada à utilização sistemática dos recursos ou dos serviços pessoais como meio de aquisição, de modo que, ao término de um período de negócios, o balanço da empresa, em termos de dinheiro (ou, no caso de empresa permanente, o valor monetário estimado de seus bens) exceda o capital, isto é, o valor estimado dos meios materiais de produção utilizados para â aquisição na troca. Não importa que isso envolva uma quantidade de bens in natura confiados a um caixeiro viajante, cuja renda podem ser outros bens in natura adquiridos em troca ou que envolva uma empresa manufatureira cujos ativos sejam prédios, máquinas, liquidez monetária, matéria prima, produtos completa ou parcialmente acabados, tudo contabilizado contra os compromissos. O fato importante é que o cálculo do capital é sempre feito em dinheiro, quer pelos modernos métodos de contabilidade, quer por qualquer outro método, por mais primitivo e grosseiro que seja. Tudo é feito em termos de balanços: um balanço inicial no começo da empresa; outro antes de qualquer decisão individual, como cálculo de sua provável lucratividade e um balanço final para apurar o lucro obtido.

Por exemplo, o balanço inicial de uma transação por commenda pode determinar um valor monetário acordado dos bens negociados (até que não esteja ainda expresso em dinheiro), e o balanço final poderá dar uma estimativa básica da distribuição dos lucros e perdas no final. Quando a transação é racional, o cálculo é a base de toda ação individual dos parceiros. O fato de poder não existir um cálculo realmente preciso de o procedimento ser mera adivinhação ou simplesmente tradicional e convencional ocorre ainda hoje em todas as formas de empreendimento capitalista nas quais as circunstâncias não exijam grande precisão. Contudo, esses pontos afetam apenas o grau da racionalidade da aquisição capitalista.

Para os propósitos desta concepção, o importante é ocorrer um verdadeiro ajuste da ação econômica no cotejo entre o dinheiro que entra e as despesas, não importando o quão primitiva possa ser sua forma. Ora, nesse sentido, o capitalismo e as empresas capitalistas, inclusive com uma considerável racionalização do cálculo, existiram em todos os países civilizados do planeta, até onde a documentação econômica nos permite avaliar; isso na China, na índia, na Babilônia, no Egito, na Antiguidade Mediterrânea e na Idade Média tanto quanto nos tempos modernos. O que havia não eram meramente empreendimentos isolados, mas empresas econômicas inteiramente dependentes da contínua renovação dos empreendimentos capitalistas e até de operações contínuas. Contudo, o comércio em especial não teve, por longo tempo, a continuidade dos nossos empreendimentos atuais, mas consistiu essencialmente numa série de empreendimentos individuais. Foi só gradualmente que tais atividades, mesmo as dos grandes comerciantes, adquiriram uma coerência interna (com a urbanização de ramificações etc.) Em todos os casos, a empresa capitalista e o empresário capitalista, não só como ocasionais, mas como empreendimentos estáveis, são muito antigos e difundidos pelo mundo.

Contudo, o Ocidente desenvolveu o capitalismo tanto em sua dimensão quantitativa, sem abrir mão daquele desenvolvimento, como em tipos, formas e direções que nunca existiram antes em parte alguma. Pelo mundo inteiro têm havido comerciantes, atacadistas e varejistas, locais e envolvidos em comércio exterior. Têm sido feitos empréstimos de todo tipo e tem havido bancos com as mais diversas funções, comparáveis, digamos, aos nossos do século XVI. Empréstimos marítimos, commenda, transações e associações semelhantes à Kommanditgesellschaft tem sido muito disseminados, mesmo como negócio constante. Por onde existiram financiamentos monetários de corporações, apareceram os agiotas, como na Babilônia, na Grécia, na índia, na China, e em Roma. Financiaram guerras e piratarias, contratos e operações de construção de todo tipo. Na política de ultramar, funcionaram como empreendedores colonialistas, como plantadores escravistas ou com trabalho direta ou indiretamente forçado, arrendaram domínios, repartições e, sobretudo tudo, impostos. Financiaram líderes partidários em eleições e condottieri em guerras civis. E finalmente, tem sido especuladores das oportunidades de ganho monetário de todos os tipos. Esse tipo de empreendedor, o aventureiro capitalista, existiu em toda parte. Suas atividades, à exceção do comércio e do crédito, assim como das transações bancárias, eram de caráter predominantemente irracional e especulativo, ou direcionado para a aquisição pela força, sobretudo a aquisição do botim, tanto na guerra como na exploração fiscal contínua das pessoas a eles sujeitas.

O capitalismo dos patrocinadores, dos grandes especuladores, dos caçadores de concessões e muito do moderno capitalismo financeiro, mesmo em tempos de paz mas, acima de tudo, aquele capitalismo envolvido com a exploração da guerra, ostenta essa marca mesmo nos modernos países do Ocidente, e uma parte – e apenas uma parte – do grande comércio internacional está estritamente relacionado com isso, hoje como sempre.

Modernamente, porém, o Ocidente desenvolveu, além desse, uma forma muito diferente de capitalismo, que nunca havia aparecido antes: a organização capitalista racional do trabalho livre (pelo menos formalmente). Dele encontramos apenas sugestões noutras partes. Até a organização do trabalho escravo encontrou um nível considerável de racionalidade apenas nas plantações, e em num grau muito pequeno na Ergasteria da Antiguidade. Nos feudos, as oficinas, a indústria caseira e as propriedades movidas pelo trabalho servil foram provavelmente ainda menos desenvolvidas. E mesmo as indústrias caseiras reais com trabalho livre existiram comprovadamente em apenas poucos casos isolados fora do Ocidente. O uso freqüente de trabalhadores diaristas levou; em pouquíssimos casos, – especialmente em monopólios estatais que eram muito diferentes da moderna organização industrial; – à criação de organizações manufatureiras, mas nunca à organização racional do aprendizado das habilidades como na nossa Idade Média.

A organização industrial racional, voltada para um mercado regular e não para as oportunidades especulativas de lucro, tanto políticas como irracionais, não é, contudo, a única peculiaridade do capitalismo ocidental. A moderna organização racional das empresas capitalistas não teria sido possível sem dois outros fatores importantes em seu desenvolvimento: a separação dos negócios da moradia da família, fato que domina completamente a vida econômica e, estritamente ligada a isso, uma contabilidade racional. A separação espacial entre os locais de trabalho e os de residência existia em outros lugares, como nos bazares orientais ou nas Ergasteria de outras culturas. O desenvolvimento de associações capitalistas auto suficientes é também encontrado no Extremo Oriente, no Oriente Próximo e na Antiguidade. Comparadas porém com a independência das modernas empresas de negócios, constituem se apenas em tímidos primórdios. A razão disso era, particularmente, que estavam completamente ausentes, ou estavam apenas começando a se desenvolver, os requisitos indispensáveis de sua independência, como nossa contabilidade racional e nossa separação legal entre as propriedades particulares e as da empresa. A tendência generalizada era o crescimento das empresas aquisitivas como parte de uma casa real ou feudal – do oikos – que era, como o percebeu Rodbertus, com toda a sua semelhança superficial, um desenvolvimento basicamente diferente, e até oposto.

Contudo, todas essas peculiaridades do capitalismo ocidental derivaram seu significado, em última análise, apenas de sua associação com a organização capitalista do trabalho. Mesmo o que é geralmente chamado de comercialização – o desenvolvimento de títulos negociáveis e a racionalização da especulação, das trocas etc., estão a ela ligadas. De fato, sem a organização capitalista do trabalho, tudo isso, até onde fosse possível, não teria o mesmo significado, quanto à estrutura social e todos, os problemas específicos ocidentais da atualidade que daquela derivam. O cálculo exato, base para as demais coisas, só é possível se baseado no trabalho livre.

E assim como o mundo não conheceu uma organização racional do trabalho fora do Ocidente moderno, ou talvez por causa disso mesmo, tampouco conheceu um socialismo racional. Na verdade, existiram a economia cívica, uma política de abastecimento cívico, o mercantilismo, a política de bem estar social dos príncipes, o racionamento, a regulamentação da vida econômica, o protecionismo e teorias do laissez faire (como na China). O mundo conheceu também experiências socialistas e comunistas de vário s tipos: familiar, religioso, militar, o socialismo de Estado (no Egito), cartéis monopolistas, e organizações de consumidores. Mas embora tenha havido em toda parte privilégios de mercado urbano, companhias, corporações e toda sorte de diferenças legais entre a cidade e o campo, o conceito de cidadão e o de burguesia não existiram fora do moderno Ocidente. Do mesmo modo, o proletariado como classe não poderia ter existido, pois não existia uma organização racional do trabalho livre sob disciplina metodizada. As lutas de classe entre as parcelas credoras e devedoras; proprietários rurais e sem terra, servos ou meeiros; interesses comerciais e consumidores ou senhores de terras existiram em toda parte nas mais diversas combinações. Mas mesmo as lutas medievais entre empreiteiros e seus trabalhadores existiram, noutros lugares, apenas no começo. O atual conflito entre o empreendedor industrial de grande escala e os trabalhadores livres era totalmente ausente. E por isso, não poderia haver os problemas com o socialismo.

Assim, numa história universal da cultura, mesmo de um ponto de vista puramente econômico, não é, em última análise, o desenvolvimento da atividade capitalista como tal, diferindo nas diversas culturas apenas quanto à forma: o tipo aventureiro, o capitalismo do comércio, da guerra, da política ou da administração como fontes de lucro e que é o ponto chave. É antes a origem desse sóbrio capitalismo burguês com sua organização racional do trabalho. Ou, em termos de história da cultura, o problema é o da origem da classe burguesa ocidental e suas peculiaridades, um problema que está com certeza estritamente ligado ao da origem da organização capitalista do trabalho, embora não se trata da mesma coisa. Pois os burgueses como classe existiam antes dó desenvolvimento das modernas formas peculiares do capitalismo, embora de fato, apenas no hemisfério ocidental.

À primeira vista, a forma especial do moderno capitalismo ocidental teria sido fortemente influenciada pelo desenvolvimento das possibilidades técnicas. Sua racionalidade é hoje essencialmente dependente da calculabilidade dos fatores técnicos mais importantes. Mas isso significa basicamente que é dependente da ciência moderna, especialmente das ciências naturais baseadas na matemática e em experimentações exatas e racionais. Por outro lado, o desenvolvimento de tais ciências e das técnicas que nelas se apóiam recebe, agora importante estímulo dos interesses capitalistas quanto a suas aplicações econômicas práticas. É verdade que a origem da ciência ocidental não pode ser atribuída a tais interesses. O cálculo, mesmo com decimais, e a álgebra, foram adotados na índia, onde o sistema decimal foi inventado; mas seu uso foi desenvolvido apenas pelo capitalismo no Ocidente, pois na índia isso não levou à moderna aritmética e contabilidade. Nem podemos dizer que as origens da matemática e da mecânica tenham sido determinadas pelos interesses capitalistas. Mas a utilização técnica do conhecimento científico, tão importante para as condições de vida da massa do povo, foi certamente incentivada pelas considerações econômicas, que lhe eram extremamente favoráveis no mundo ocidental. Esse incentivo, porém, derivava das peculiaridades da estrutura social no Ocidente. Devemos mesmo perguntar de qual parte de tais estruturas derivava, uma vez que nem todas poderiam ter sido da mesma importância.

Entre os fatores de importância incontestável estão as estruturas racionais das leis e da administração, pois que o moderno capitalismo racional não necessita apenas dos meios técnicos de produção, mas também de um sistema legal calculável e de uma administração baseada em termos de regras formais. Sem isso, o capitalismo aventureiro e de comércio especulativo e todo tipo de capitalismo politicamente determinado seriam possíveis, mas não o empreendimento racional da iniciativa privada, com capital fixo e cálculos certeiros. Tais tipos de sistemas legais e de administração, num grau relativo de perfeição legal e formal, têm sido disponíveis para a atividade econômica apenas no Ocidente. Devemos pois perguntar de onde se originou esse sistema legal. Entre outras circunstâncias, o interesse capitalista, por sua vez, sem dúvida contribuiu para preparar o caminho à predominância do direito e, à administração a de uma classe de juristas especialmente treinados na legislação nacional, embora não tenha sido o único nem o principal. Forças bem diferentes atuaram no seu desenvolvimento. E porque os interesses capitalistas não fizeram o mesmo na índia ou na China? Porque lá o desenvolvimento científico, artístico, político ou econômico não tomou o mesmo caminho de racionalização que é peculiar ao Ocidente? Porque em todos os casos acima o problema é o racionalismo peculiar e específico da cultura ocidental. Ora, nesses termos, pode-se entender coisas muito diferentes, como a discussão a seguir mostrará repetidamente. Temos, por exemplo, a racionalização da contemplação mística, atitude que, vista sob outro prisma da vida, é especialmente irracional, e temos também como temos as racionalizações da vida econômica, da técnica, da pesquisa científica, do treino militar, do direito e da administração. Além disso, cada um desses campos pode ser racionalizado em termos consoantes com valores últimos e finalidades muito diferentes, e o que é racional de um certo ponto de vista, poderá ser irracional de outro. Racionalizações dos mais variados tipos têm existido em vários setores da vida, em todas as áreas da cultura. Para caracterizar suas diferenças de um ponto de vista da história da cultura é necessário saber quais setores foram racionalizados e em que direção. Por isso, nossa primeira preocupação é desvendar e explicar a gênese e a peculiaridade do racionalismo ocidental e, por esse enfoque, sua forma moderna.

Cada tentativa de explicação deve, reconhecendo a importância fundamental do fator econômico, tomar em consideração, acima de tudo as condições econômicas. Mas ao mesmo tempo, não se deve deixar de considerar a correlação oposta. E isso porque o desenvolvimento do racionalismo econômico é parcialmente dependente da técnica e do direito racionais, mas é ao mesmo tempo determinado pela habilidade e disposição do homem em adotar certos tipos de conduta racional prática. Quando tais tipos de conduta têm sido obstruídos por obstáculos espirituais, o desenvolvimento da conduta econômica racional encontrou também séria resistência interna. As forças mágicas e religiosas e as idéias éticas de dever nelas baseadas têm estado sempre, no passado, entre as mais importantes influências formativas da conduta. Nos estudos aqui coletados, ocuparemos-nos de tais forças.

Dois ensaios anteriores foram colocados no início, como tentativa de abordar um ponto importante do problema que é geralmente mais difícil de ser apanhado: a influência de certas idéias religiosas no desenvolvimento de um espírito econômico, ou o ethos de um sistema econômico. Nesse caso estamos lidando com a conexão do espírito da moderna vida econômica com a ética racional da ascese protestante. Assim, tratamos aqui apenas de um lado do encadeamento causal. Os estudos posteriores sobre Ética Econômica das Religiões Mundiais tentam uma visão geral das relações entre as mais importantes religiões, a vida econômica e a estratificação social de seu meio, para seguir ambas as relações causais até onde for necessário para achar pontos de comparação com o desenvolvimento ocidental.

Só desse modo se pode tentar uma avaliação causal daqueles elementos da ética econômica das religiões ocidentais que as diferenciam das outras, na esperança de obter ao menos um grau tolerável de aproximação. Daí tais estudos não terem a pretensão de serem análises culturais completas, ainda que breves. Pelo contrário, enfatizam propositalmente, em cada cultura, os elementos que as diferenciam da civilização ocidental. São eles, pois, orientados definitivamente para os problemas que parecem importantes para a compreensão da cultura ocidental desse ponto de vista. Com tal objetivo em mente, não seria possível qualquer outro procedimento. Mas, para evitar mal entendidos, devemos dar uma ênfase especial às limitações do nosso propósito.

Por outro lado, os não iniciados devem ser, no mínimo, alertados para não exagerar a importância de tais investigações. O sinólogo, indólogo, o semitólogo ou egiptólogo não encontrarão aqui, logicamente, nenhuma novidade. Esperamos apenas que não encontrem nada de definitivamente errado nos pontos essenciais. O autor não sabe até que ponto um não especialista pôde se aproximar desse ideal. É bem evidente que qualquer um que seja obrigado a confiar em traduções e, mais ainda, no uso e avaliação de fontes monumentais, documentais ou literárias, deve se valer de literatura específica, muitas vezes controvertida, e cujos méritos não é capaz de avaliar corretamente; tal escritor só pode achar modesto o valor do seu trabalho. E, ademais, a quantidade de traduções disponíveis de fontes verdadeiras (isto é, de inscrições e documentos) é ainda muito pequena, especialmente em relação à China, em comparação com tudo o que existe de importante. De tudo isso se depreende o caráter decididamente provisório destes estudos, especialmente das partes relativa à Ásia. Apenas o especialista tem competência para um julgamento definitivo. E naturalmente, os presentes estudos foram escritos apenas porque ainda não foram feitos estudos especializados com este intuito particular e deste particular ponto de vista. Eles estão destinados a ser ultrapassados, num sentido muito mais importante, digamos, que um trabalho científico. Mas uma invasão de outros campos específicos, por mais reprovável que possa ser não pode ser evitada num estudo comparativo; e disso se devem assumir as conseqüências, resignando se às grandes dúvidas quanto ao grau de sucesso alcançado.

A moda e o zelo dos literati nos faz considerar, hoje, o especialista como dispensável, ou relegá-lo à posição subalterna de observador. Quase todas as ciências devem algo aos diletantes, com freqüência pontos de vista muito valiosos. O diletantismo porém, como princípio, seria o fim da ciência. Aquele que tiver vontade de ver pode ir ao cinema, embora hoje lhe seja também oferecido, fartamente, o presente campo de investigação na forma literária. Nada está mais longe destes estudos, profundamente sérios, que tal atitude. E posso acrescentar, quem quiser ouvir um sermão, que vá a um convento. _A questão do valor relativo das culturas aqui comparadas, não recebe uma palavra sequer. É bem verdade que os caminhos do destino humano só podem amedrontar a quem dele observa apenas um segmento. Mas será oportuno que guarde para si a esses pequenos comentários pessoais, como se faz à vista do mar ou de montanhas majestosas, a menos que se ache com vocação e capacidade para lhes dar expressão artística ou forma profética. Em muitos outros casos, a volumosa conversa sobre intuição nada mais faz senão ocultar uma falta de perspectiva em relação ao objeto, que merece o mesmo julgamento que a semelhante falta de perspectiva para com o homem.

É necessária uma justificativa para o fato de não ter sido utilizado o material etnográfico numa extensão compatível com o valor que sua contribuição naturalmente mereceria em qualquer investigação profunda, especialmente quanto às religiões asiáticas. Tal limitação não foi apenas imposta pelo restrito potencial humano de trabalho. A omissão pareceu nos permissível por estarmos aqui, necessariamente, tratando da ética religiosa das classes que foram as vigas mestras da cultura em seus respectivos países. O que interessa é a influência que sua conduta teve. É bem verdade que esta só pode ser completamente conhecida em todos os detalhes quando comparada com a etnografia e com o folclore. Devemos pois admitir expressamente e enfatizar que essa é uma falha a que o etnógrafo porá, legitimamente, objeções. Espero contribuir de algum modo para o preenchimento dessa lacuna, com um estudo sistemático da Sociologia da Religião. Tal empreendimento teria extrapolado os limites desta investigação e de seu propósito circunscrito. Ela teve de se contentar em trazer à luz os pontos de comparação com as nossas religiões ocidentais, tanto quanto o possível.

Por fim, podemos fazer referência ao lado antropológico do problema. Quando achamos, repetidamente, mesmo em setores da vida aparentemente independentes, que certos tipos de racionalização se desenvolveram no Ocidente, e só aqui no Ocidente, seria natural suspeitar que a razão mais importante das diferenças estivesse na hereditariedade. O autor admite estar inclinado a pensar que a importância da hereditariedade biológica seja muito grande. Mas apesar dos notáveis achados da pesquisa antropológica, não vejo, até o presente, como medir, exata ou aproximadamente, quer a extensão, quer, sobretudo, a forma de sua influência no desenvolvimento aqui investigado. Deve ser uma das primeiras tarefas da investigação sociológica e histórica analisar todas as influências e relações causais que possam ser explicadas satisfatoriamente em termos de reações ao meio ambiente. Só então, e quando a neurologia e psicologia raciais comparativas tiverem progredido além dos atuais e de certo modo promissores estágios, poderemos esperar por uma probabilidade de resposta satisfatória para essa questão. Por ora, essa condição me parece não existir, e um apelo à hereditariedade envolveria assim uma renúncia prematura à possibilidade de um conhecimento atingível agora, e deslocaria o problema para fatores ainda desconhecidos no presente.




Filiação Religiosa e Estratificação Social

A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO


Filiação religiosa e estratificação social

Uma simples olhada nas estatísticas ocupacionais de qualquer país de composição religiosa mista mostrará, com notável freqüência, uma situação que muitas vezes provocou discussões na imprensa e literatura católicas e nos congressos católicos, principalmente na Alemanha: o fato que os homens de negócios e donos do capital, assim como os trabalhadores mais especializados e o pessoal mais habilitado técnica e comercialmente das modernas empresas é predominantemente protestante.

Este fato não se verifica apenas onde a diferença de religião coincide com uma nacionalidade, e portanto com seu desenvolvimento cultural, como no caso da Alemanha oriental e da Polônia. Observamos a mesma coisa onde se fez levantamentos de filiação religiosa, por onde quer que o capitalismo, na época de sua grande expansão, pôde alterar a distribuição social conforme suas necessidades e determinar a estrutura ocupacional. Quanto maior foi a liberdade de ação, mais claro o efeito apontado.

É bem verdade que a maior participação relativa dos Protestantes na propriedade do capital, na direção e nas esferas mais altas das modernas empresas comerciais e industriais pode em parte ser explicada pelas circunstâncias históricas oriundas de um passado distante, nas quais a filiação religiosa não poderia ser apontada como causa de condição econômica, mas até certo ponto parece ser resultado daquela.

A participação nas funções econômicas envolve geralmente alguma posse de capital e uma dispendiosa educação e, muitas vezes, de ambas. Hoje tais coisas são largamente dependentes da posse de riqueza herdada, ou, no mínimo, de certo bem estar material. Certo número dos domínios do velho império, que eram mais economicamente desenvolvidos, mais favorecidos pela situação e recursos naturais, particularmente a maioria das cidades mais ricas, aderiram ao Protestantismo no século XVI.

Os resultados de tais circunstâncias favorecem os protestantes, até hoje, na sua labuta pela existência econômica. Surge assim a indagação histórica: porque os lugares de maior desenvolvimento econômico foram, ao mesmo tempo, particularmente propícios a uma revolução dentro da Igreja? A resposta não é tão simples como se poderia pensar.

A emancipação do tradicionalismo econômico parece sem dúvida ser um fator que apóia grandemente o surgimento da dúvida quanto à santidade das tradições religiosas e de todas as autoridades tradicionais. Devemos porém notar, fato muitas vezes esquecido, que a Reforma não implicou na eliminação do controle da Igreja sobre a vida quotidiana, mas na substituição por uma nova forma de controle. Significou de fato o repúdio de um controle que era muito frouxo e, na época praticamente imperceptível, pouco mais que formal, em favor de uma regulamentação da conduta como um todo, que penetrando em todos os setores da vida pública e privada, era infinitamente mais opressiva e severamente imposta.

A regra da Igreja Católica, "punindo o herege, mas perdoando o pecador”, mais no passado do que no presente, é hoje tolerada pelas pessoas de caráter econômico completamente moderno, e nasceu entre as camadas mais ricas e economicamente mais avançadas do mundo por volta do século XV. Por outro lado, a regra do Calvinismo como foi imposta no século XVI em Genebra e na Escócia, entre o século XVI e XVII em grande parte da Holanda e no século XVII na Nova Inglaterra e, por algum tempo na própria Inglaterra, se tornaria a forma mais intolerável de controle eclesiástico do indivíduo que já pôde existir. E foi exatamente isso que foi sentido por uma grande parte da velha aristocracia comercial da época de Genebra, da Holanda e da Inglaterra. E a queixa dos reformadores, nestas regiões de grande desenvolvimento econômico, não era o excesso de controle da vida por parte da Igreja, mas a sua falta.

Como, pois, aconteceu que os países mais economicamente avançados da época, e suas classes médias burguesas, não só não se opuseram a esta tirania inédita do Puritanismo, como chegaram a desenvolver sua heróica defesa? A burguesia raramente mostrara tal heroísmo antes e nunca o mostrou depois. Foi o “nosso último heroísmo”, como disse Carlyle não sem-razão.

Além disso, há algo especialmente importante: pode ser, como já foi aventado, que a maior participação dos protestantes nas posições de proprietário e de dirigente na moderna vida econômica seja entendida hoje, pelo menos em parte, simplesmente como resultado da maior riqueza material herdada por eles. Contudo, há certos fenômenos que não podem ser explicados por esse caminho. Só para citar alguns, há uma grande diferença perceptível, em Baden, na Baviera e na Hungria, no tipo de educação superior que católicos e protestantes proporcionam a seus filhos. O fato de a porcentagem de católicos entre os estudantes e os formados nas instituições de ensino superior ser proporcionalmente inferior à população total, pode, certamente, ser largamente explicado em termos de riqueza herdada. Porém, entre os próprios formados católicos, a porcentagem dos que receberam formação em instituições que preparam especialmente para os estudos técnicos e ocupações comerciais e industriais, e em geral para a vida de negócios de classe média, é muito inferior à dos protestantes. Por sua vez, os católicos preferem o tipo de aprendizagem oferecido pelos ginásios humanísticos. Essa é uma circunstância à qual não se aplica a explicação acima apontada, mas que, ao contrário, é uma das razões do pequeno engajamento dos católicos nas empresas capitalistas.

Mais notável ainda é um fato que explica parcialmente a menor proporção de católicos entre os trabalhadores especializados na moderna indústria. Sabe-se que as fábricas arregimentaram boa parte de sua mão de obra especializada entre os jovens artesãos; contudo, isso é muito mais verdadeiro para os diaristas protestantes que para os católicos.

Em outras palavras, entre os diaristas católicos parece preponderar uma forte tendência a permanecer em suas oficinas, e tornar com freqüência mestres artesãos, enquanto os protestantes são fortemente atraídos para as fábricas, para nelas ocuparem cargos superiores de mão de obra especializada e posições administrativas.

A explicação desses casos é, sem dúvidas que as peculiaridades mentais e espirituais adquiridas do meio ambiente, especialmente do tipo de educação favorecido pela atmosfera religiosa da família e do lar, determinaram a escolha da ocupação e, por isso, da carreira.

A menor participação dos católicos na moderna vida de negócios da Alemanha é tão notável justamente porque contraria a tendência observada em todos os tempos, até mesmo no presente.

As minorias nacionais ou religiosas, em posição de subordinação em relação a um grupo de governantes, pela sua exclusão voluntária ou involuntária das posições de influência política, são aparentemente engajadas com especial vigor nas atividades econômicas. Seus membros mais aptos buscam o reconhecimento de suas habilidades nesse campo, uma vez que não há oportunidades a serviço do Estado.

Isso, sem dúvida, mostrou-se verdadeiro com os poloneses na Rússia e na Prússia Oriental, onde, contrariamente ao que ocorreu na Galícia, de onde provinham, conseguiram um desenvolvimento econômico mais rápido. O mesmo ocorreu em outros tempos com os huguenotes, na França de Luís XIV, com os não conformistas e quakers na Inglaterra, e finalmente com os judeus durante os últimos dois mil anos. Mas os católicos da Alemanha não mostraram nenhuma evidência desse tipo. Também no passado, contrariamente aos protestantes quer da Holanda quer da Inglaterra, na época em que eram perseguidos ou apenas tolerados, não alcançaram desenvolvimento econômico relevante. Resta, por outro lado, observar o fato de os protestantes (especialmente certos ramos do movimento, que serão amplamente discutidos adiante), quer como classe dirigente, quer como subordinada, tanto em maioria como em minoria, terem mostrado uma especial tendência para desenvolver o racionalismo econômico, fato que não pode ser observado entre os católicos em qualquer das situações citadas. A explicação principal de tais diferenças deve pois ser procurada no caráter intrínseco permanente de suas crenças religiosas, e não apenas em suas situações temporárias externas, históricas e políticas.

Nossa tarefa será investigar essas religiões com o intuito de descobrir as particularidades que têm ou que tiveram, que resultaram no comportamento descrito acima. Numa análise superficial, e com base em certas impressões comuns, poderíamos ser tentados a admitir que a menor mundanidade do catolicismo, o caráter ascético de seus mais altos ideais tenha induzido seus seguidores a uma maior indiferença para com as boas coisas deste mundo. E tal explicação reflete a tendência de julgamento popular de ambas as religiões.

Do lado protestante, é usada como base das críticas de tais ideais ascéticos (reais ou imaginários) do modo de viver católico, enquanto os católicos respondem com a acusação de que o materialismo resulta da secularização de todos os ideais pelo protestantismo.

Um escritor contemporâneo tentou definir a diferença de atitudes diante da vida econômica da seguinte maneira: “O católico é mais quieto, tem menor impulso aquisitivo; prefere uma vida a mais segura possível, mesmo tendo menores rendimentos, a uma vida mais excitante e cheia de riscos, mesmo que esta possa lhe propiciar a oportunidade de ganhar honrarias e riquezas. Diz o provérbio, jocosamente: “Coma ou durma bem”. Neste caso, o protestante prefere comer bem, e o católico, dormir sossegado”.

De fato, esse desejo de “comer bem” pode ser encarado como uma caracterização correta, embora incompleta, da motivação de muitos dos protestantes da Alemanha atual. Mas as coisas nem sempre foram assim: os puritanos ingleses, americanos e holandeses tinham a característica exatamente oposta à alegria de viver, um fato que é, como veremos, da maior importância para o nosso estudo. Além disso, os protestantes franceses, entre outros, conservaram e ainda conservam, em certa medida até hoje, as características das igrejas calvinistas de todos os países, especialmente as sob a cruz do tempo das guerras religiosas.

Não obstante, tais características foram (ou talvez tenham sido até as causas, como indagaremos mais adiante) sabidamente um dos mais importantes fatores de desenvolvimento do capitalismo e da indústria na França, e assim permaneceu, na pequena escala permitida pelas perseguições que sofreram. Se pudermos chamar essa seriedade e predominância de interesses religiosos na conduta geral da vida de alheamento da matéria, então os calvinistas franceses foram e ainda são tão desapegados do mundo quanto os católicos do norte da Alemanha, para os quais sua fé é tão vital como para poucos povos no mundo.

Ambos diferem de modo semelhante da tendência religiosa predominante em seus respectivos países. Os católicos da França são, em seus escalões inferiores, grandemente interessados nos prazeres da vida e, nas camadas superiores, francamente hostis à religião. Os protestantes da Alemanha, do mesmo modo, são absorvidos pelas atividades econômicas diuturnas e, nas suas camadas superiores, são muito indiferentes à religião.

Dificilmente alguma coisa poderá mostrar tão claramente como essa comparação que, tais vagas idéias, como o suposto desapego do Catolicismo e da suposta alegria materialista do Protestantismo, e outras semelhantes, de nada servem para o nosso propósito. Tais termos gerais de diferenciação não refletem os fatos de hoje, e certamente nem mesmo os passados.

Se contudo alguém quiser delas se utilizar, deverá associar-lhe diversas outras observações que sugiram que o aparente conflito entre o desapego, o ascetismo e a devoção eclesiástica de um lado, e a participação na aquisição de bens materiais do outro, possam de fato vir a apresentar um íntimo relacionamento.

Um fato que nos parece certamente notável, para começar com uma observação superficial, é o grande número de representantes das formas mais espirituais da fé cristã que se originaram nos círculos comercias. O Pietismo, em particular, tem grande número de seus seguidores mais zelosos com essas origens. Isso pode ser explicado como uma espécie de reação contra a cobiça por parte das naturezas sensíveis não adaptadas à vida comercial e, como no caso de Francisco de Assis, muitos pietistas interpretaram sua conversão desse modo.

Do mesmo modo, é uma notável circunstância que muitos dos maiores empreendedores capitalistas – até Cecil Rhodes – tenham tido origem em famílias de clérigos, o que pode ser interpretado como uma reação contra a sua formação ascética.

Essa forma de explicação, contudo, torna se falha quando se combinam um extraordinário senso capitalístico dos negócios com as mais intensas formas religiosas nas mesmas pessoas e grupos, e que lhes penetra e direciona a vida toda.

Esses casos não são isolados, mas seus traços são característicos de muitas das mais importantes Igrejas e seitas da história do Protestantismo. O Calvinismo, em especial, por onde quer que tenha surgido, mostrou essa combinação. Embora de pouca monta no tempo da expansão da Reforma, ele (como qualquer outra crença protestante) estava associado a certas classes sociais específicas, e é característico e até típico que, nas Igrejas dos Huguenotes da França, monges de negócios (comerciantes e artesãos) fossem especialmente numerosos entre os fiéis, especialmente no tempo das perseguições. Mesmo os espanhóis sabiam que a heresia (isto é, o Calvinismo holandês) promovia os negócios, e isso coincide com as opiniões que Sir William Petty manifestou em sua discussão sobre as razões do desenvolvimento capitalista da Holanda. Gothein qualifica corretamente a diáspora calvinista como a semente da economia capitalista. Mesmo em tais casos poderia se considerar como fator decisivo a superioridade das culturas econômicas francesa e holandesa de onde se originaram tais comunidades, ou talvez a imensa influência desses na quebra das relações tradicionais. Mas a situação na França, como sabemos pela luta de Colbert, era a mesma até o século XVII. Mesmo a Áustria, para não citar outros países, importava diretamente artífices protestantes.

Mas nem todas as ramificações protestantes parecem ter tido a mesma poderosa influência nesse sentido. A do Calvinismo, mesmo na Alemanha, parece ter sido das mais fortes, e a fé reformada parece ter promovido o desenvolvimento do espírito do capitalismo no Wupperthal como em outros lugares. Muito mais que o Luteranismo, parecem prová-lo comparações gerais e particulares, especialmente no Wupperthal. Buckle e, entre os poetas ingleses, Keats, enfatizaram essa mesma relação com a Escócia. Ainda mais notável, e que deve ser só mencionada, é a ligação entre um modo de vida religioso e o mais intenso desenvolvimento da acuidade comercial entre aquelas seitas cujo desapego do mundo é tão proverbial quanto sua riqueza, especialmente os Quaker e menonitas. O papel que os primeiros desempenharam na Inglaterra e na América do Norte, coube aos últimos na Alemanha e na Holanda.

Os menonitas foram tolerados por Frederico Guilherme I, na Prússia Oriental por tê-los como indispensáveis para a indústria, a despeito de sua absoluta recusa de prestar serviço militar; e esse é um dos numerosos e conhecidos fatos que, considerando o caráter daquele monarca, torna-se dos mais significativos. Por fim, essa combinação de intensa religiosidade com igualmente forte desenvolvimento da acuidade comercial, característica comum aos Pietistas, é um fato amplamente conhecido.

É desnecessário acumular mais exemplos nesta discussão meramente introdutória; esses poucos já deixam claro um ponto: que o espírito de intenso trabalho, de progresso, ou como se queira chamá-lo e cujo despertar se esteja propenso a atribuir ao Protestantismo, não deve ser entendido, como é a tendência, como uma alegria de viver ou por qualquer outro sentido ligado ao Iluminismo. O velho Protestantismo de Lutero, Calvino, Knox e Voet tinha bem pouco a ver com o que é hoje chamado de progresso.


Aquele era abertamente hostil a aspectos inteiros da vida moderna, que hoje não são mais contestados nem pelos religiosos mais ferrenhos. Se quisermos encontrar uma relação interna entre certas expressões do velho espírito protestante e a cultura capitalista moderna, deveremos tentar encontrá-la, bem ou mal, não na alegria de viver mais ou menos materialista, ou ao menos anti-ascética, mas nas suas características puramente religiosas.

Mostesquieu (Esprit des Lois, Livro XX, cap, 7) diz dos ingleses que “foram, de todos os povos, os que mais progrediram em três coisas importantes: na religião, no comércio e na liberdade”. Não seria possível que sua superioridade comercial e sua adaptação às instituições políticas liberais tivessem, de algum modo, relação com a religiosidade que Mostesquieu lhes atribui?

Ocorre-nos um grande número de relações possíveis, vagamente percebidas, quando colocamos a questão nesses termos. Será agora nossa tarefa formular com a maior clareza possível aquilo que percebemos confusamente, considerando a infindável diversidade de todo o material histórico. Mas para chegar a isso, é necessário deixarmos de lado os conceitos vagos e gerais com os quais lidamos até aqui, e tentar penetrar nas características peculiares e nas diferenças entre esses grandes mundos do pensamento religioso que existiram historicamente nos vários ramos do Cristianismo. Contudo, antes de continuarmos, se fazem necessárias algumas observações, primeiro quanto às peculiaridades do fenômeno do qual buscamos uma explicação histórica, e depois quanto ao sentido em que tal explicação é possível dentro dos limites dessas investigações.

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O Espírito do Capitalismo - Parte I

A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO


O espírito do capitalismo – Parte I

No título deste estudo usamos a frase, algo pretensiosa, o espírito do capitalismo. O que se entende por isso? A tentativa de dar qualquer definição para isso implica em certas dificuldades, inerentes à natureza deste tipo de investigação.

Se puder ser encontrado algo a que se possa aplicar esse termo, com algum significado compreensível, só poderá ser uma individualidade histórica, isto é, um complexo de elementos associados na realidade histórica que nós aglutinamos em um todo conceitual, do ponto de vista de seu significado cultural.

Tal conceituação histórica, contudo, uma vez que seu conteúdo se refere a um fenômeno significativo por sua individualidade única, não pode ser definida pela fórmula genus proximum, differentia specifica, mas deve ser montada gradualmente de suas partes individuais, tomadas da realidade histórica que a constituem. Por isso, o conceito final e definitivo não poderá ser encontrado no início, mas aparecerá no fim da investigação. Em outras palavras, devemos trabalhar, ao longo da discussão, para o seu principal resultado, ou seja, a melhor formulação conceitual do que se entende aqui por espírito do capitalismo, isto é, a melhor do ponto de vista que nos interessa aqui. Esse ponto de vista (do qual falaremos adiante) não é, de mais a mais, o único possível a partir do qual se podem analisar os fenômenos históricos que investigamos. Outros pontos de vista produziriam, para esse como para qualquer outro fenômeno histórico, outras características essenciais. Como resultado disso, não é necessário compreender como espírito do capitalismo somente aquilo que viria a significar para nós, para os propósitos da nossa análise.

Esse é um resultado necessário da natureza dos conceitos históricos que tentam, para suas finalidades metodológicas, apanhar a realidade histórica não em uma forma abstrata e geral, mas em concretos conjuntos genéticos de relações, inevitavelmente de caráter individual, e especificamente únicos.

Por isso, se tentarmos determinar o objeto, a análise e explicação histórica tentadas não podem ser feitas na forma de definição conceitual, mas, ao menos no início, como uma descrição provisória do que entendemos aqui por espírito do capitalismo. Tal descrição é entretanto indispensável para uma compreensão clara do objetivo da investigação. Com essa finalidade, remetemo-nos a um documento desse espírito, que contém, em uma pureza quase clássica, aquilo que buscamos – com a vantagem de ser ao mesmo tempo livre de qualquer relação direta com a religião, sendo pois, para os nossos propósitos, livre de preconceitos.

Lembre-se que o tempo é dinheiro. Para aquele que pode ganhar dez shillings por dia pelo seu trabalho e vai passear ou fica ocioso metade do dia, apesar de não gastar mais que seis pence em sua vadiagem ou diversão, não deve ser computada apenas essa despesa; ele gastou, ou melhor, jogou fora mais cinco shillings".

Lembre-se que o crédito é dinheiro. Se um homem deixa seu dinheiro em minhas mãos por mais tempo que o devido, está me dando os juros, ou tudo o que eu possa fazer com ele durante esse tempo. Isto atinge somas consideráveis quando alguém goza de bom e amplo crédito, e faz dele bom uso".
Lembre-se que o dinheiro é de natureza prolífica e geradora. O dinheiro pode gerar dinheiro, e seu produto gerar mais, e assim por diante. Cinco shillings circulando são seis; circulando de novo são sete e três pence e assim por diante, até se tornarem cem libras. Quanto mais dele houver, mais produz a cada aplicação, de modo que seus juros aumentam cada vez mais rapidamente. Aquele que mata uma porca prenhe, destrói sua descendência até a milésima geração. Aquele que “mata” uma coroa, destrói tudo aquilo que poderia ter produzido, até muitas libras”.

Lembre-se do ditado: O bom pagador é dono da bolsa alheia. Aquele que é conhecido por pagar exata e pontualmente na data prometida pode, a qualquer momento e em qualquer ocasião, levantar todo o dinheiro de que seus amigos possam dispor. Isso, por vezes, é de grande utilidade. Além da industriosidade e da frugalidade, nada contribui mais para a subida de um jovem na vida que a pontualidade e a justiça em todos os seus negócios; por isso, nunca mantenha dinheiro emprestado uma hora sequer além do tempo prometido, para que o desapontamento não feche para sempre, à bolsa de teus amigos”.

As menores ações que possam afetar o crédito de um homem devem ser levadas em conta. O som do teu martelo às cinco da manhã ou às oito da noite, ouvido por um credor, te o tornará favorável por mais seis meses; mas se te vir à mesa de bilhar, ou ouvir tua voz na taverna quando deverias estar no trabalho, cobrará o dinheiro dele no dia seguinte, de uma vez, antes do tempo.”

Isto mostra, entre outras coisas, que estás consciente daquilo que tens; fará com que pareças um homem tão honesto como cuidadoso, e isso aumentará teu crédito.”

Não te permitas pensar que tens de fato tudo o que possuis, e viver de acordo. Esse é um erro em que caem muitos que têm crédito. Para evitar isso, mantenha por algum tempo uma contabilidade exata de tuas despesas e tuas receitas. Se, de início te deres ao trabalho de mencionar os detalhes, isso terá este bom efeito: descobrirás que mesmo pequenas e insignificantes despesas se acumulam em grandes somas, e discernirás o que poderia ter sido e o que poderá ser, no futuro, poupado sem causar grandes inconvenientes”.

Por seis libras anuais poderás desfrutar do uso de cem libras, desde que sejas um homem de reconhecida prudência e honestidade.”

Aquele que gasta um groat por dia inutilmente, desperdiça mais de seis libras por ano, que seria o preço do uso de cem libras.”

Aquele que desperdiça o valor de um groat de seu tempo por dia, um dia após o outro, desperdiça o privilégio de usar cem libras a cada dia.”

Aquele que perde inutilmente o valor de cinco shillings de seu tempo, perde cinco shillings, e poderia com a mesma prudência tê-los jogados ao mar.”

Aquele que perde cinco shillings, não perde apenas essa soma, mas também todas as vantagens que poderia obter investindo a em negócios, e que durante o tempo em que um jovem se torna um velho, se tornaria uma soma considerável”.

É Benjamin Franklin que nos admoesta com tais sentenças, as mesmas que Ferdinand Kürnberger satiriza em seu inteligente e malicioso Picture of American Culture, como uma suposta confissão de fé do yankee. Não há o que duvidar de que é o espírito do capitalismo que aqui se expressa de modo característico, conquanto estejamos longe de afirmar que tudo o que possamos entender como pertencente a ele esteja contido nisso.

Consideremos por um momento esta passagem, cuja filosofia foi resumida por Kümber nestas palavras: “Eles tiram sebo do gado e dinheiro dos homens”. A peculiaridade dessa filosofia de avareza parece ser o ideal dos homens honestos, de crédito reconhecido, e acima de tudo a idéia de dever que o indivíduo tem no sentido de aumentar o próprio capital, assumido como um fim a si mesmo. De fato, o que nos é aqui pregado não é apenas um meio de fazer a própria vida, mas uma ética peculiar. A infração de suas regras não é tratada como uma tolice, mas como um esquecimento do dever. Essa é a essência do exposto. Não se trata de mera astúcia de negócios, o que seria algo comum, mas de um ethos. E essa é a qualidade que nos interessa.

Quando Jacob Fugger, falando com um sócio de negócios que havia se aposentado e que tentava convencê-lo a fazer o mesmo, uma vez que já havia acumulado dinheiro suficiente e que poderia deixar a chance para outros, rejeitou a idéia como pusilânime e respondeu que “ele (Fugger) pensava diferente e procurava ganhar dinheiro enquanto pudesse”; o espírito dessa colocação é evidentemente bem diferente das de Franklin. Aquilo que no caso de Franklin foi uma expressão de audácia comercial e uma inclinação pessoal moralmente neutra assume nesse outro o caráter ético de uma regra de conduta de vida. O conceito de espírito do capitalismo é usado aqui no sentido específico de espírito do capitalismo moderno.

Pelo modo como estamos colocando o problema, é obvio que estamos nos referindo ao capitalismo da Europa Ocidental e da América do Norte. O capitalismo existiu na China, na índia, na Babilônia no mundo clássico e na Idade Média. Mas em todos esses casos, como veremos, o ethos particular faltou. Ora, todas as atitudes de Franklin são coloridas de utilitarismo. A honestidade é útil, pois assegura o crédito; e é assim com a pontualidade, com a industriosidade, com a frugalidade e essa é a razão pela qual são virtudes. Uma dedução lógica disso seria que a aparência de honestidade serviria ao mesmo propósito quando fosse suficiente, e um excesso desnecessário desta virtude pareceria, aos olhos de Franklin, um desperdício improdutivo. E de fato, a história de sua conversão para essas virtudes, na sua autobiografia, ou a discussão do valor da estrita manutenção das aparências de modéstia, da contínua diminuição dos próprios méritos para mais tarde conquistar o reconhecimento geral, confirmam tais impressões. De acordo com Franklin, tais virtudes, assim com as demais, só são virtudes a medida em que são úteis ao indivíduo, e a substituição pela mera aparência é sempre suficiente desde que atinja o fim desejado. E esta é a conclusão inevitável do utilitarismo estrito. A impressão que muitos alemães têm, de que as virtudes professadas pelo americanismo são pura hipocrisia parece confirmada por esse caso notável.

Porém o caso não é, como poderia parecer, tão simples. O próprio caráter de Benjamin Franklin, como transparece pela extraordinária candura de sua autobiografia, anula esta suspeita. A circunstância a que ele atribui seu reconhecimento da utilidade da virtude a uma revelação divina que queria encaminhá-lo na trilha da retidão, mostra que algo mais que mera ornamentação de motivos puramente egocêntricos encontra-se envolvida.

De fato, o summum bonum dessa ética, o ganhar mais e mais dinheiro, combinado com o afastamento estrito de todo prazer espontâneo de viver é, acima de tudo, completamente isento de qualquer mistura eudemonista, para não dizer hedonista; é pensado tão puramente como um fim em si mesmo, que do ponto de vista da felicidade ou da utilidade para o indivíduo parece algo transcendental e completamente irracional. O homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como um meio para a satisfação de suas necessidades materiais. Essa inversão daquilo que chamamos de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio guia do capitalismo, tanto quanto soa estranha para todas as pessoas que não estão sob a influência capitalista. Ela expressa ao mesmo tempo um tipo de sentimento que está intimamente ligado com certas idéias religiosas. Se, pois formularmos a pergunta por que devemos fazer dinheiro às custas dos homens, o próprio Benjamin Franklin, embora não fosse um deísta convicto, responde em sua autobiografia com uma citação da Bíblia que lhe fora inculcada pelo pai, rígido calvinista, em sua juventude: “Vês um homem diligente em seus afazeres? Ele estará acima dos reis”. (Provérbios 22; 29). O ganho de dinheiro na moderna ordem econômica é, desde que feito legalmente, o resultado e a expressão da virtude e da eficiência em certo caminho; e essas eficiência e virtude são, como agora se tornou fácil de ver, o alfa e o ômega da verdadeira ética de Franklin, como foi expressa nos trechos citados, tanto quanto em todos os seus escritos, sem exceção.

Na verdade, essa idéia tão peculiar do dever do indivíduo em relação à carreira, que nos é familiar atualmente, mas na realidade tão pouco óbvia, é o que há de mais característico na ética social da cultura capitalista e, em certo sentido constitui sua base fundamental. É uma obrigação que se supõe que o indivíduo sinta, e desato sente, em relação ao conteúdo de sua atividade profissional, não importa qual seja, particularmente se ela se manifesta como uma utilização de suas capacidades pessoais ou apenas de suas posses materiais (capital).

Naturalmente, essa concepção não se manifestou apenas sob as condições capitalistas. Pelo contrário, mais tarde seguiremos suas origens em tempos anteriores ao advento do capitalismo. Naturalmente não afirmamos tampouco que a aceitação consciente de tais máximas éticas por parte dos indivíduos, quer empresários quer trabalhadores das modernas empresas capitalistas seja condição para a futura existência do capitalismo atual. A economia capitalista moderna é um imenso cosmos no qual o indivíduo nasce, e que se lhe afigura, ao menos como indivíduo, como uma ordem de coisas inalterável, na qual ele tem de viver. Ela força o indivíduo, a medida que esse esteja envolvido no sistema de relações de mercado, a se conformar às regras de comportamento capitalistas. O fabricante que se opuser por longo tempo a essas normas será inevitavelmente eliminado do cenário econômico, tanto quanto um trabalhador que não possa ou não queira se adaptar às regras, que será jogado na rua, sem emprego.

Assim pois, o capitalismo atual, que veio para dominar a vida econômica, educa e seleciona os sujeitos de quem precisa, mediante o processo de sobrevivência econômica do mais apto.

Mas aqui podemos facilmente vislumbrar os limites do conceito de seleção como meio de explicação histórica. Para que um tal modo de vida, tão bem adaptado às peculiaridades do capitalismo, pudesse ser selecionado, isto é, viesse a sobrepujar os outros, ele teve de se originar em algum lugar, não em indivíduos isolados, mas como modo de vida de inteiros grupos humanos. Em relação à doutrina do mais ingênuo materialismo histórico, segundo a qual tais idéias se originaram como um reflexo ou como uma superestrutura da situação econômica, falaremos com mais detalhes a seguir. Nesse ponto, basta para os nossos propósitos chamar a atenção para o fato de que, sem duvidar, no lugar de nascimento de Benjamin Franklin (Massachusetts) o espírito do capitalismo, (no sentido adotado) estava presente antes da ordem capitalista. Havia queixas contra uma habilidade peculiar de cálculo para obtenção de lucro na Nova Inglaterra, que se distinguia das outras partes da América, desde os idos de 1632. Está fora de questão que o capitalismo permaneceu, de longe, menos desenvolvido em algumas das colônias vizinhas, que depois se tornariam os estados do sul dos Estados Unidos da América, a despeito do fato de que essas últimas foram fundadas por grandes capitalistas por motivos comerciais, enquanto as colônias da Nova Inglaterra foram fundadas por pregadores e graduados com a ajuda de pequenos burgueses, artesãos e yoemen por motivos religiosos. Nesse caso, a relação causal é certamente o inverso daquela sugerida pelo ponto de vista materialista.

A origem e a história de tais idéias é porém muito mais complexa do que supõem os teóricos da superestrutura. O espírito do capitalismo, no sentido em que usamos o termo, teve de lutar por sua supremacia contra um mundo inteiro de forças hostis.

Um estado mental como aquele expresso nas passagens citadas de Franklin, que arrancaram aplausos de um povo inteiro, tanto no tempo antigo como na Idade Média teria sido proscrito como o mais baixo tipo de avareza e como uma atitude completamente isenta de respeito próprio. E de fato é ainda vista assim por todos os grupos sociais que estão pouco envolvidos ou adaptados às condições do capitalismo moderno. E isso não devido ao fato de o instinto de aquisição ser desconhecido ou pouco desenvolvido naqueles tempos, como foi aventado muitas vezes. Tampouco porque a auri sacra fames, a fome de riqueza fosse, ontem como hoje, menos poderosa fora do capitalismo burguês do que dentro de sua esfera de ação, como nos quer fazer crer a ilusão dos modernos românticos. A diferença entre o espírito pré-capitalista e o capitalista não deve ser encontrada nesse ponto. A avidez do mandarim chinês, do antigo aristocrata romano ou do moderno camponês pode suportar qualquer comparação.

E a auri sacra fames de um barqueiro napolitano, o barcaiolo, e certamente dos representantes asiáticos de semelhantes atividades, tanto quanto a dos artesãos dos países do sul da Europa e da Ásia é, como cada um poderá verificar por si, muito mais intensa, e especialmente menos escrupulosa do que, digamos, a de um inglês em circunstâncias similares.

O predomínio universal da absoluta falta de escrúpulos na ocupação de interesses egoístas na obtenção do dinheiro tem sido uma característica daqueles países cujo desenvolvimento burguês capitalista, medido pelos padrões ocidentais, permaneceu atrasado.

Como todo empregador sabe, a falta de consciência dos trabalhadores desses países, por exemplo, da Itália se comparada com a Alemanha, foi e ainda é em certa medida o principal obstáculo ao seu desenvolvimento capitalista. O capitalismo não pode se utilizar do trabalho daqueles que praticam a doutrina da liberum arbitrium indisciplinado, e menos ainda pode usar os homens de negócios que pareçam absolutamente inescrupulosos ao lidar com outros, como aprendemos de Franklin. Por isso, a diferença não está no grau de desenvolvimento de qualquer impulso de ganhar dinheiro. A auri sacra fames é tão velha quanto a história do homem. Veremos, porém, que aqueles que a ela se entregam sem reservas, como a um impulso descontrolado, como aquele capitão de mar holandês que “atravessaria o inferno por lucro, mesmo que chamuscasse suas velas”, não são de fato os representantes daquela atitude mental da qual deriva especificamente o espírito do moderno capitalismo, como fenômeno de massa, que é o que interessa. Em todos os períodos históricos, sempre que foi possível houve a aquisição cruel, desligada de qualquer norma ética. Como a guerra e a pirataria, o comércio tem sido, muitas vezes, irrestrito em suas relações com estrangeiros e com os externos ao grupo. A dupla ética permitiu o que era proibido negociar entre irmãos.

A aquisição capitalista aventureira tem sido familiar em todos os tipos de sociedade econômica que conheceram o comércio com o uso do dinheiro e que ofereciam oportunidades mediante comenda, exploração de impostos, empréstimos de Estado, financiamento de guerras, cortes ducais e cargos públicos. Do mesmo modo, a atitude interior do aventureiro, que zomba de qualquer limitação ética, tem sido universal. A implacabilidade absoluta e voluntária na aquisição tem muitas vezes estado estritamente ligada à mais rígida conformidade com a tradição. De mais a mais, com o colapso do tradicionalismo e a quase total extensão da livre empresa econômica, mesmo no interior do grupo social, a novidade não foi, no geral, eticamente justificada e encorajada, mas apenas tolerada como um fato. E tal fato tem sido tratado como eticamente indiferente ou como repreensível, mas infelizmente inevitável. Isto não tem sido apenas a atitude normal de todos os ensinamentos éticos mas, o que é mais importante, expresso também na ação prática do homem médio dos tempos pré-capitalistas, pré-capitalistas no sentido de que a utilização racional do capital em empresas estáveis e a organização racional capitalista do trabalho não haviam ainda se tornado as forças dominantes na determinação da atividade econômica. Ora foi justamente essa atitude que constituiu um dos mais fortes obstáculos internos encontrados por toda parte pela adaptação do homem às condições de uma economia burguesa capitalista ordenada.

O mais importante oponente contra o qual o espírito do capitalismo, entendido como um padrão de vida definido e que clama por sanções éticas, teve de lutar, foi esse tipo de atitude e reação contra as novas situações, que poderemos designar como tradicionalismo. Também nesse caso, qualquer tentativa de definição final deve ser mantida em suspenso. Devemos, por outro lado, tentar dar um sentido provisório claro, citando alguns casos. Começaremos por baixo, pelos trabalhadores.

Um dos meios técnicos de que os empregadores modernos lançam mão para garantir o maior volume possível de trabalho de seus homens é o sistema de pagamento por tarefa. Na agricultura, por exemplo, a colheita é um caso em que se requer a maior intensidade possível de trabalho, e, dada a possível instabilidade do tempo, a diferença entre bons lucros e grandes perdas pode depender da velocidade da colheita. Assim, o sistema de pagamento por tarefa é quase universal neste caso. E a medida que o interesse do empregador em acelerar a colheita aumenta com o aumentar dos resultados e da intensidade do trabalho, tem sido feita repetidamente a tentativa, aumentando o valor da tarefa dos trabalhadores, dando lhes assim a oportunidade de ganhar o que seria para eles altos salários e de interessá-los em aumentar sua eficiência. Mas com uma freqüência surpreendente, foi encontrada uma dificuldade peculiar: o aumento do valor da tarefa resultou, muitas vezes, não no aumento, mas no decréscimo do obtido no mesmo tempo, pois os trabalhadores reagiram não aumentando, mas diminuindo o volume de trabalho. Por exemplo, um homem que ganha 1 marco por acre ceifado, ceifa 2 e 1/2 acres por dia e ganha dois marcos e meio por dia; quando o valor da tarefa foi aumentado para 1,25 marcos por acre ceifado, não ceifou 3 acres, como poderia ter feito facilmente, ganhando 3,75 marcos, mas ceifou apenas 2 acres de modo a continuar ganhando os 2,5 marcos a que estava acostumado. A oportunidade de ganhar mais foi menos atraente do que trabalhar menos. Ele não se perguntava: quanto poderia ganhar em um dia se eu fizesse o maior trabalho possível? Em vez disso, perguntava se: quanto devo trabalhar para ganhar o salário, de 2,5 marcos que eu ganhava antes e que bastava para as minhas necessidades tradicionais?

Este é um exemplo do que queremos significar aqui por tradicionalismo. O homem não deseja “naturalmente” ganhar mais e mais dinheiro, mas viver simplesmente como foi acostumado a viver e ganhar o necessário para isso. Onde quer que o capitalismo moderno tenha começado sua ação de aumentar a produtividade do trabalho humano aumentando sua intensidade, tem encontrado a teimosíssima resistência desse traço orientador do trabalho pré-capitalista. E ainda hoje a encontra, e por mais atrasadas que sejam as forças de trabalho (do ponto de vista capitalista) com que tenha de lidar.

Para voltar ao nosso exemplo, outra possibilidade óbvia, visto que o apelo para o instinto aquisitivo através de maiores salários falhou, teria sido tentar a política oposta, para forçar o trabalhador, reduzindo o valor da tarefa, a trabalhar mais para ganhar o mesmo dinheiro que ganhava antes. Baixos salários e altos lucros, até nossos dias, parecem, para um observador superficial, estar relacionados; tudo o que é pago em salários parece envolver uma redução de lucros correspondente. Desde seu início, o capitalismo trilhou repetidas vezes esse caminho. Durante séculos foi artigo de fé que baixos salários eram produtivos, isto é, que aumentavam os resultados materiais do trabalho, tanto que, como veremos, em relação a isso Pieter de la Cour dizia há muito tempo, quase no espírito do antigo calvinismo, que as pessoas só trabalhavam porque e enquanto eram pobres.

Mas a eficácia desse método, aparentemente tão eficiente, tem seus limites. Obviamente, um excesso de mão de obra que possa ser empregada a baixo preço no mercado de trabalho é uma necessidade para o desenvolvimento do capitalismo. Mas, embora tão grande exército de reserva possa em certos casos favorecer a expansão quantitativa, ele desafia seu desenvolvimento qualitativo, especialmente para as empresas que fazem uso mais intensivo do trabalho. Baixos salários não são sinônimo de trabalho barato. De um ponto de vista puramente quantitativo, a eficiência do trabalho diminui com um salário que seja fisiologicamente insuficiente, que, a longo prazo, signifique a sobrevivência da inépcia.

O silesiano médio de nossos dias ceifa, quando exige o máximo de si, pouco mais que dois terços da terra que um pomeraniano ou um mecklemburguês, mais bem pagos e alimentados, e o polonês, quanto mais oriental for sua origem, produz progressivamente menos que o alemão. A política de baixos salários falha mesmo de um ponto de vista puramente comercial sempre que a questão de produzir bens que exijam qualquer tipo de trabalho especializado, ou o uso de maquinaria cara e facilmente danificável, ou, em geral, sempre que se requeira grande dose de atenção aguda ou de iniciativa. Nesses casos, os baixos salários não compensam, e seus efeitos são opostos ao que se pretendia. E isso não apenas porque é absolutamente indispensável um senso de responsabilidade, mas, em geral, também uma atitude, ao menos durante as horas de trabalho, livre de contínuos cálculos de como poder ganhar o salário habitual, com o maior conforto e o menor esforço possíveis. Ao contrário, o trabalho deve ser executado como se fosse um fim absoluto em si mesmo, como uma vocação. Contudo, tal atitude não é produto da natureza. Não pode ser estimulada apenas por baixos ou altos salários, mas só pode ser produzida por um longo e árduo processo educativo.


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sábado, agosto 05, 2006

Apresentação

A RIQUEZA DAS NAÇÕES - ADAM SMITH
INVESTIGAÇÃO SOBRE SUA NATUREZA E SUAS CAUSAS - Volume I


APRESENTAÇÃO


011 - A RIQUEZA DAS NAÇÕES

A importância da grande obra econômica de Adam Smith é usualmente definida pelos efeitos de sua influência como, alternativamente, o marco do início do enfoque científico dos fenômenos econômicos ou a Bíblia da irresistível vaga livre-cambista do século XIX. Embora ambas as definições sejam apropriadas, é interessante que, preliminarmente à discussão desses aspectos metodológicos e políticos de A Riqueza das Nações, seja apresentado um roteiro de seus principais aspectos teóricos e normativos de modo a fornecer ao leitor uma visão integrada do conjunto de suas proposições analíticas, das quais a obra deriva sua característica adicional de fonte dos paradigmas teóricos sobre os quais foi construída a Economia Política clássica.

Do ponto de vista formal, a teoria econômica apresentada em A Riqueza das Nações é essencialmente uma teoria do crescimento econômico cujo cerne é clara e concisamente apresentado em suas primeiras páginas: a riqueza ou o bem-estar das nações é identificado com seu produto anual per capita que, dada sua constelação de recursos naturais, é determinado pela produtividade do trabalho "útil” ou "produtivo” - que pode ser entendido como aquele que produz um excedente de valor sobre seu custo de reprodução - e pela relação entre o número de trabalhadores empregados produtivamente e a população total. Embora Smith atribuísse explicitamente maior importância ao primeiro desses determinantes como fator causal, a dinâmica de seu modelo de crescimento pode ser melhor entendida em termos do que Myrdal batizou de um processo de ”causalidade circular cumulativa” e, em seus traços essenciais, consiste no seguinte: o crescimento da produtividade do trabalho, que tem origem em mudanças na divisão e especialização do processo de trabalho, ao proporcionar o aumento do excedente sobre os salários permite o crescimento do estoque de capital, variável determinante do volume de emprego produtivo; a pressão da demanda por mão-de-obra sobre o mercado de trabalho, causada pelo processo de acumulação de capital, provoca um crescimento concomitante dos salários e, pela melhora das condições de vida dos trabalhadores, da população; o aumento paralelo do emprego, salários e população amplia o tamanho dos mercados que, para um dado estoque de capital, é o determinante básico da extensão da divisão do trabalho, iniciando-se assim a espiral de crescimento.

Da representação esquemática esboçada acima não se deve inferir, entretanto, que Smith sustentasse uma visão essencialmente otimista do processo de crescimento a longo prazo. Segundo ele, o crescimento econômico não somente dependeria de fatores institucionais que afetassem tanto a propensão a investir - como a existência de garantias à propriedade e os regimes legais ou consuetudinários de posse e uso da terra - quanto a extensão do mercado - como a existência de restrições ao comércio - mas, ainda que sob sistemas ideais de Governo, não deveria sustentar-se indefinidamente. O estado estacionário, no qual a acumulação líquida de capital tenderia a desaparecer, embora logicamente não necessário, era visto por ele como resultado inevitável da redução da taxa de lucro - incentivo básico à acumulação - pela exaustão das oportunidades de investimento e pelo crescimento dos salários conseqüente a um rápido e sustentado aumento do estoque de capital.

A estrutura teórica de seu ”modelo” de crescimento é cuidadosamente desenvolvida nos dois primeiros dos cinco livros em que se divide a obra. O Livro Primeiro discute os determinantes do crescimento da produtividade do trabalho e da distribuição funcional da renda, que regulam o excedente total disponível e, portanto, o potencial de acumulação de capital. Dada a importância atribuída por Smith à divisão social do trabalho, o Livro se inicia com a discussão de sua relação com a propensão inata do homem à troca e com o processo de crescimento econômico (Capítulos I e II) e dos limites impostos à sua extensão (Capítulo III). A relação direta notada por Smith entre a divisão do trabalho e o grau de mercantilização das relações econômicas leva ao estudo das conseqüências da difusão do uso da moeda como meio de troca (Capítulo IV). A introdução da moeda como numerário geralmente aceito coloca o problema da comparação intertemporal de valores e a necessidade da discussão das diferenças entre preços nominais e reais (Capítulo V). A teoria dos preços é apresentada em seguida (Capítulos VI e VII), distinguindo-se o preço de mercado, determinado pela interação instantânea entre ”demanda efetiva” e oferta, e o que Smith chama de preço natural10 equivalente aproximado do preço normal de longo prazo da microeconomia marshalliana -, que é a medida de valor relevante para a análise do processo de crescimento desenvolvida na obra, determinado pela soma dos níveis naturais das remunerações do trabalho, do capital e da terra envolvidos no processo produtivo de cada mercadoria. Os preços de mercado e os preços naturais estão, contudo, intimamente relacionados: na ausência de imobilidade de capital (por efeito, por exemplo, de restrições legais ou insuficiência de informação) os preços de mercado gravitam estavelmente em torno dos preços naturais sob a influência de inúmeros fatores conjunturais mas, ao longo de um período suficientemente longo de tempo, devem ser suficientes para cobrir a remuneração normal dos fatores de produção empregados.

É interessante notar nesse ponto que, embora acessória à preocupação central da obra, a teoria do valor apresentada em  Riqueza das Nações iluminou sob vários ângulos o fenômeno da formação de preços. Por um lado, na análise da inter-relação dos preços naturais e de mercado, Smith elaborou o fundamento da teoria da dinâmica de mercado, incorporada pelos economistas clássicos e refinada posteriormente por Marshall, isto é, a noção de que o ajustamento de oferta e demanda se dá através de variações no emprego dos fatores - no caso da teoria de Smith e dos clássicos, essencialmente do capital - provocadas pelo efeito de excessos ou insuficiências de oferta, via preços, sobre suas remunerações, introduzindo, de passagem, a noção do papel fundamental dos preços para a alocação de recursos. Por outro lado, a teoria do valor de Adam Smith provoca o abandono da análise, então tradicional, do fenômeno do valor de troca apoiada em considerações sobre demanda/valor de uso e escassez, cuja utilidade é confinada por Smith ao estudo dos preços de mercado, e é o ponto de partida do enfoque clássico do valor baseado em custos de produção, que revela a ligação direta existente entre o sistema de preços e os fenômenos da produção e distribuição. Esse enfoque do problema da formação de preços dominaria completamente o pensamento econômico até a revolução marginalista-utilitarista de um século depois.

A formulação da teoria do preço natural se completa com o estudo dos níveis naturais de remuneração dos fatores. A determinação dos salários, discutida no Capítulo VIII, resulta, como indicado acima, da interação entre investimento e população. Os lucros, analisados no Capítulo IX, são determinados pelo tamanho do estoque de capital dada uma taxa exógena de juros, ajustada para levar em conta o risco empresarial. O Capítulo X discute os diferenciais de salários e lucros existentes em diferentes empregos de trabalho e capital e, finalmente, a renda da terra, entendida como um excedente determinado pelo preço dos produtos do solo, dados os níveis de salários e lucros, é analisada no Capítulo XI. Esse capítulo, que conclui o Livro Primeiro, contém ainda uma longa digressão empírica, associada aos problemas teóricos discutidos no Capítulo V, sobre as variações históricas do valor dos metais nos quatro séculos anteriores.

Nenhum comentário sobre o Livro Primeiro de  Riqueza das Nações pode omitir menção às inconsistências formais da análise do valor nele apresentada, fruto da profunda imprecisão verbal de Smith em seu Capítulo V e fonte de controvérsias que tornaram ainda mais obscura a essência da teoria smithiana dos preços. A origem dessas controvérsias é a famosa crítica de Ricardo à afirmativa feita por Smith no Capítulo V de que o valor de um bem é igual à quantidade de trabalho pela qual ele pode ser trocado ou comandar indiretamente, como inconsistente com a teoria do valor trabalho - pela qual o valor de troca de um bem é determinado pela quantidade direta e indireta de trabalho necessária à sua produção - segundo ele defendida por Smith em outros pontos da obra.11 De fato, uma leitura atenta do Capítulo V, onde Smith discute a influência das flutuações no valor do dinheiro sobre os preços reais e nominais das mercadorias, mostra que, embora proponha o uso do trigo como deflator por razões empíricas,12 defende categoricamente a idéia de que a única medida invariante do valor de um bem é a quantidade de trabalho despendida em sua produção, com base na hipótese psicológica da invariabilidade da ”desutilidade” ou custo real do trabalho para o trabalhador.13 Dessa hipótese, e do fato de que Smith ali conduz a análise com referência a uma economia de produtores individuais, na qual o processo de troca é motivado apenas pela conveniência da divisão social do trabalho, resulta que uma dada quantidade de um bem só possa vir a ser trocada por quantidades de outros bens que seu vendedor suponha conter uma quantidade de trabalho equivalente à necessária à sua produção.14 É esse resultado que o leva a afirmar que o valor de um bem é sempre igual à quantidade de trabalho, que ele pode comprar, ou ser trocado, ou ”comandar”. É claro, contudo, que essa afirmativa é inconsistente com a realidade de uma economia caracterizada pela apropriação privada dos meios de produção e trabalho assalariado, onde a produção não vise somente a troca mas o lucro, e, portanto, com a análise do valor natural feita por Smith no capítulo seguinte. A validade da proposição, nesse contexto, necessitaria, como notou Ricardo, da hipótese institucionalmente absurda de que os trabalhadores se apropriassem do valor total do produto. Deve ser notado, entretanto, que essa afirmativa destacada por Ricardo e ainda erradamente apresentada por alguns autores como sendo a teoria do valor de Smith, não constitui sequer uma teoria dos preços, pois não se refere ao que determina os preços, ou seja, nenhuma explicação é dada sobre por que o valor de um bem deve ser tal que possa ser trocado por uma dada quantidade de trabalho. Além disso, apesar das imprecisões verbais, o comentário equívoco de Smith sobre o custo real do trabalho como medida de valor de troca não deve ser tomado como evidência de sua aceitação do princípio quantitativo de determinação dos preços característicos da teoria do valor trabalho. Uma simples inspeção das páginas iniciais do Capítulo VI é suficiente para evidenciar que Smith restringe a validade da teoria do valor trabalho aos limites quase pré-históricos dos ”estados rudes e primitivos da sociedade”, onde não teria ainda ocorrido significativa acumulação de capital ou apropriação privada da terra e de que sua verdadeira teoria do valor é baseada em custos de produção e fundamenta-se na noção de que em ”sociedades civilizadas” a remuneração do capital e da terra influencia a formação dos preços. A controversa afirmativa do Capítulo V pode ser interpretada, como sugere Meek, apenas como uma proposição qualitativa e abstrata sobre o trabalho como fonte do valor no sentido de que o valor de troca de mercadorias surge em sociedades caracterizadas pelo intercâmbio dos produtos de indivíduos, somente em virtude do fato de serem elas resultantes do trabalho desses indivíduos.15

O Livro Segundo analisa as condicionantes e características da acumulação de capital, que determina a oferta de emprego produtivo e sua distribuição setorial, e contém a maior parte da teoria monetária de Smith. No Capítulo I é apresentada e ilustrada a divisão analítica, tornada clássica posteriormente, entre capital fixo e circulante. O papel da moeda e do crédito na circulação de mercadorias e na acumulação de capital é estudado no Capítulo II. No Capítulo III, o mais importante do Livro Segundo sob o aspecto teórico, é discutido o conceito de trabalho produtivo e articulada a proposição de que é o volume de poupanças, limitado pelo volume do excedente gerado acima das necessidades de auto-reprodução do sistema econômico e determinado pela parcimônia dos agentes produtivos, a causa imediata do aumento do estoque de capital; como Smith sugere implicitamente que a cada ato de poupança está associada uma decisão de investimento, os problemas de insuficiência de demanda efetiva são ignorados por hipótese. O Capítulo IV apresenta a teoria dos juros e o Capítulo V conclui com uma análise factual e algo idiossincrática da produtividade do capital em diferentes setores.

O Livro Terceiro contém uma síntese abrangente da evolução econômica da humanidade, muito influenciada pela longa História da Inglaterra de Hume, e constitui, no contexto da obra, o teste empírico-histórico da teoria do crescimento econômico apresentada anteriormente.

Por fim, os Livros Quarto e Quinto enfeixam as proposições normativas, de legislação e política econômica. No primeiro, Smith discute longamente os fundamentos das políticas comercial e colonial mercantilistas, de onde emerge sua crítica devastadora sobre a racionalidade econômica da superestrutura jurídica do antigo sistema colonial (Capítulos I a VIII) e conclui com considerações sobre as propostas dos fisiocratas (Capítulo IX), onde Adam Smith não esconde sua enorme simpatia e respeito intelectual, embora qualificado, pela escola francesa. O Livro Quinto trata de política fiscal, analisando as políticas de gasto público, onde desenvolve interessante discussão das vantagens e desvantagens da intervenção do Estado em diferentes áreas de atividade (Capítulo I), de tributação (Capítulo II) e, finalmente, da dívida pública (Capítulo III).

02 - O HOMEM E A OBRA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

A obra econômica de Adam Smith é tão profundamente impregnada pelas preconcepções filosóficas correntes na Inglaterra do período das luzes e pelo cenário econômico da época em que foi concebida que, passados mais de dois séculos da publicação de A Riqueza das Nações, é impossível avaliar corretamente sua contribuição intelectual sem referência a essas influências.

Um entendimento preciso da filosofia e do método subjacentes a A Riqueza das Nações requer que se recuperem os traços essenciais da formação intelectual extremamente eclética de Smith. A influência original e mais marcante sobre Smith foi a de seu mestre Hutcheson, herdeiro em linha direta de sucessão dos filósofos protestantes, como Grotius e Pufendorf, da Filosofia do Direito Natural. Para os propósitos da presente discussão, o jusnaturalismo pode ser definido como uma teologia racionalista que afirma existir uma ordem natural e harmônica do universo, de origem divina mas revelada pela razão, da qual se podem derivar princípios morais e de direito a partir da noção de que a ordem natural inclui normas éticas às quais a conduta individual e a legislação devem obedecer para o cumprimento da vontade divina. Entretanto, apesar de ser questionável que o traço unificador da concepção de mundo de Smith deriva da Filosofia do Direito Natural, ele veio a divergir das formulações mais ortodoxas do jusnaturalismo em dois importantes sentidos. Por um lado, influenciado diretamente por seu amigo Hume e inspirado na ciência experimentalista inglesa e na obra de Montesquieu, Smith abandonou o método racionalista do jusnaturalismo tradicional por uma metodologia essencialmente empiricista, isto é, pela noção de que a ordem natural subjacente à organização do universo não podia ser apreendida aprioristicamente através apenas do raciocínio abstrato dedutivo, mas que sua revelação deveria proceder através da construção de ”sistemas” ou modelos baseados em princípios gerais obtidos por indução de observações empíricas, a partir dos quais a lógica dos fenômenos universais poderia ser casual ou racionalmente deduzida.16 Por outro lado, já na Teoria dos Sentimentos Morais, Smith afasta-se decisivamente da componente altruísta do jusnaturalismo de Hutcheson no que concerne à análise da ética das relações econômicas, propondo em seu lugar a justificativa moral da defesa do interesse próprio nessa esfera das relações humanas, com base na idéia de que da busca do interesse individual resultam benefícios sociais, noção já exposta de forma contundente por Mandeville em sua Fábula das Abelhas, publicada entre 1714 e 1729.

É da conjugação dessas influências filosóficas e metodológicas que emergem duas concepções pioneiras e revolucionárias contidas em A Riqueza das Nações. A primeira é a análise dos fenômenos econômicos como manifestações de uma ordem natural a eles subjacente, governada por leis objetivas e inteligíveis através de um sistema coordenado de relações causais. Dessa noção de sistema econômico, partilhada por Smith apenas com os fisiocratas, dentre seus contemporâneos, resultou nada menos do que a elevação da Economia à categoria de ciência, por identidade de método e fundamento filosófico com as ciências naturais existentes, rompendo com a tradição metafísica e com a polêmica empiricista vulgar que caracterizam, respectivamente, os escritos econômicos escolásticos e mercantilistas anteriores. A segunda é a doutrina segundo a qual essa ordem natural requer, para sua operação eficiente, a maior liberdade individual possível na esfera das relações econômicas, doutrina cujos fundamentos racionais são derivados de seu sistema teórico, já que o interesse individual é visto por ele como a motivação fundamental da divisão social do trabalho e da acumulação de capital, causas últimas do crescimento do bem-estar coletivo. Deve-se notar entretanto que, ao contrário do que sugerem tanto a lógica obscura da crítica radical vulgar quanto a exegese ideológica liberal-conservadora contemporânea, a defesa qualificada que Smith faz ao laissez-faire não o classifica nem como apóstolo do interesse burguês e pregador da harmonia de interesses entre as classes sociais como querem os primeiros, nem como defensor empedernido da iniciativa privada e inimigo à outrance da interferência do Estado, como querem os últimos. Mesmo uma leitura perfunctória da obra é suficiente para revelar, de um lado, a flagrante simpatia com que Smith se refere aos economicamente desprotegidos e seu reconhecimento explícito das contradições de classe17 e, de outro lado, sua ênfase nos limites impostos à liberdade econômica por princípios naturais de justiça e suas opiniões sobre a ampla gama de serviços úteis mas não atraentes para a iniciativa privada que caberia ao Estado prover.18 A doutrina da liberdade natural de Adam Smith é dirigida, isto sim, contra as interferências da legislação e das práticas exclusivistas características do mercantilismo que, segundo ele, restringem a operação benéfica da lei natural na esfera das relações econômicas. É disso que a doutrina derivou seu apelo político e veio a constituir-se no fundamento teórico do programa dos estadistas livre-cambistas em todo o mundo que, no século seguinte, acabaria por reduzir a ruínas o ordenamento jurídico da antiga ordem econômica internacional. A análise, feita acima, das influências filosóficas sofridas por Smith, conquanto permita entender o método por ele adotado e a coerência abstrata entre o sistema teórico e as proposições normativas liberais contidas em  Riqueza das Nações, é insuficiente para explicar as características do modelo econômico apresentado na obra, isto é, a escolha do crescimento econômico como variável a ser explicada e a especificação teórica das relações entre as principais variáveis do modelo. Parte dos nexos de sua construção teórica deriva, é claro, de influências de outros economistas. Smith, como qualquer autor, simplesmente se utilizou do avanço proporcionado pelos trabalhos de seus predecessores. Por exemplo, a essência de sua teoria dos diferenciais de salários em diferentes ocupações é de Cantillon; grande parte da teoria monetária apresentada no Livro Segundo deriva de Hume, Harris e Davenant; suas discussões sobre comércio internacional e tributação devem muito a Hume e Petty, respectivamente; a noção fundamental da importância da divisão do trabalho para o progresso material, já formulada por Locke e Petty, Smith recebeu de Hutcheson; e aos fisiocratas Adam Smith deve nada menos do que (i) a percepção da importância do estudo da distribuição funcional da renda em ligação com a formação de preços,19 parte essencial da teoria do valor exposta em  Riqueza das Nações, (ii) a libertação da noção mercantilista de que a riqueza ou o bem-estar potencial depende do estoque de metais ou do balanço comercial do país, em favor da noção moderna de produto e renda, (iii) o conceito de trabalho produtivo, embora aqui Smith se desvencilhasse da doutrina fisiocrática de produtividade exclusiva da agricultura, e (iv) a idéia de um fluxo circular de renda e produto.

Entretanto, dado o método essencialmente empiricista de Smith, os traços essenciais de seu modelo - a ênfase no crescimento econômico como o fenômeno a ser explicado e o crescimento de produtividade e acumulação de capital como suas causas finais - devem ser buscados nos fatos da história econômica da Inglaterra e da Baixa Escócia no século XVIII, onde o excelente desempenho da agricultura, a substancial melhoria do sistema de transporte e o grande crescimento da indústria têxtil rural, das manufaturas e do comércio propiciaram um progresso material sem precedentes. Glasgow, onde Smith passou a maior parte de sua vida adulta antes de iniciar a composição de sua grande obra, recebeu ainda o estímulo adicional da abertura dos mercados coloniais ingleses a mercadorias escocesas após a união da Escócia ao Governo de Westminster na primeira década do século, que transformou a região do estuário do Clyde no maior empório europeu de tabaco e proporcionou o desenvolvimento do núcleo da futura grande siderurgia escocesa e de inúmeras outras indústrias.

Smith não ficou alheio a essa transformação. Grande parte de seu círculo de amizades em Glasgow era composta de homens de negócio da região21 e não é difícil, portanto, identificar na percepção direta dos fenômenos que acompanharam o processo acelerado de crescimento econômico britânico - aumento de produtividade, acumulação de capital, melhoria dos padrões de vida e crescimento populacional - a fonte de inspiração empírica de sua obra. Seu toque genial decorre, entretanto, da percepção das conseqüências analíticas da paralela e acelerada generalização dos métodos capitalistas de organização da produção, do progressivo aumento da competição e da maior mobilidade de capital entre as diferentes ocupações: o surgimento do lucro na agricultura e na transformação industrial como forma estável e quantitativamente significativa do excedente e teoricamente distinta das outras parcelas distributivas no que concerne a sua formação, e o papel da taxa de lucro na orientação dos investimentos como peça essencial do ajustamento dinâmico nesse novo contexto. É a incorporação desses fatos históricos em uma teoria do lucro e da alocação de capital em seu modelo que constitui a grande contribuição de Smith ao desenvolvimento da Economia Política clássica e o traço distintivo entre Smith e outros economistas do período final do mercantilismo - como Steuart, que associava os lucros aos ganhos comerciais, Petty, que os incorporava à renda, ou Hume e Cantillon, que os identificavam analiticamente com os salários - ou os fisiocratas, que simplesmente ignoravam sua existência, identificando o excedente sobre os salários com a renda fundiária. Essa teoria, como outras proposições teóricas revolucionárias na história do pensamento econômico, não poderia ser postulada antes que se explicitassem certos fenômenos sócio-econômicos cuja explicação motiva o surgimento de novos paradigmas teóricos. Nesse sentido, considerada em perspectiva histórica, A Riqueza das Nações não é somente produto de um intelecto poderoso e do fermento intelectual do Iluminismo inglês, mas é também produto do desenvolvimento histórico do capitalismo.

03 - SMITHIANA

A seção conclusiva deste breve ensaio introdutório tem a intenção de fornecer uma orientação bibliográfica inicial ao leitor interessado em prosseguir no estudo da obra de Adam Smith. A edição moderna das obras completas de Smith é a The Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, patrocinada pela Universidade de Glasgow e editada pela Oxford University Press para comemorar o bicentenário da publicação de A Riqueza das Nações. A coleção reúne The Theory of Moral Sentiments (ed. por D. D. Raphael e A. L. Macfie), An Inquiry into the N ature and Causes o f the Wealth o f Nations (ed. por R. H. Campbell, A. S. Skinner e W. B. Todd), Essays on Philosophical Subjects (ed. por W. P. D. Wightman), Lectures on Rethoric and Belles Lettres (ed. por J. C. Bryce), Lectures on Jurisprudence (ed. por R. L. Meek, D. D. Raphael e P. G. Stein) que apresenta, além das notas das aulas de Smith descobertas e publicadas por Cannan em 1896, um conjunto inédito de notas de aula descobertas por J. M. Lothian em Aberdeen em 1958 e fragmentos de escritos econômicos de Adam Smith anteriores à publicação de A Riqueza das Nações, Correspondence of Adam Smith (ed. por E. C. Mossner e I. S. Ross) e é acompanhada por uma nova Life of Adam Smith, escrita por I. S. Ross e por uma coletânea de ensaios sobre a obra de Adam Smith, The Market and the State: Essays in Honour of Adam Smith (ed. por T. Wilson e A. S. Skinner).

Para a localização da obra de Smith no contexto do pensamento econômico e filosófico de sua época, a Parte II de J. A. Schumpeter, History ofEconomic Analysis, Londres, 1954, ainda não tem rival, assim como para uma visão de conjunto da obra econômica de Smith o artigo de E. Cannan, ”Adam Smith as an Economist”, in: Econômica, 1926, ainda é um clássico.

As origens e a evolução do pensamento filosófico e do método de Smith são discutidas em dois artigos de O. H. Taylor, ”Economics and The Idea of Natural Laws” e ”Economics and the Idea of Jus Naturale”, in: Quarterly Journal of Economics, 1929-1930; por J. Viner, em ”Adam Smith and Laissez-Faire”, in: Viner, J., The Long View and the Short, Glencoe, 1958; por W. F. Campbell em ”Adam Smith’s Theory of Justice, Prudence and Beneficence”, in: American Economic Review (supl.), 1967; por N. Devletogou em ”Montesquieu and the Wealth of Nations”, in: Canadian Journal of Economics, 1963; por A. S. Skinner em ”Economics and History: The Scottish Enlightenment”, in: Scottish Journal of Political Economy, 1965, e no artigo de Bittermann citado no item 3, acima.

A teoria smithiana do crescimento econômico, sua relação com teorias contemporâneas e sua influência sobre o pensamento clássico são apresentadas de forma simples e magistral por Lord Robbins em The Theory of Economic Development in the History of Economic Thought, Londres, 1968. A evolução da noção smithiana de valor na direção de uma teoria de custos de produção é discutida por H. M. Robertson e W. L. Taylor em ”Adam Smith’s Approach to the Theory of Value”, in: The Economic Journal, 1957. As teorias da distribuição apresentadas por Smith e sua influência sobre o pensamento clássico inglês são analisadas em E. Cannan, Â History o f the Theories ofProduction and Distribution from 1776 to 1848, 3a edição, Londres, 1917. A noção de competição exposta em A Riqueza das Nações, que difere em vários aspectos da noção moderna de competição perfeita, é discutida por P. J. McNulty em ”A Note on the History of Perfect Competition”, in: Journal o f Poli tical Economy, 1967.

As teorias do comércio internacional de alguns predecessores livre-cambistas e sua influência sobre Adam Smith são discutidas em J. Viner, Studies in the Theory of International Trade, e a questão da influência dos fisiocratas é analisada por R. L. Meek, em The Economics of Phisiocracy, Londres, 1962.

O leitor deve precaver-se, entretanto, de que as referências exegéticas citadas acima formam apenas uma amostra extremamente seletiva da vastíssima literatura sobre a obra de Smith22 e de que  Riqueza das Nações ilustra de forma perfeita o dito usual de que, no estudo da história do pensamento econômico, nada substitui o original.

Winston Fritsch



WINSTON FRITSCH

(Rio de Janeiro, 1947 - ) é Professor e Pesquisador do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da qual foi Diretor.


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