A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo - Introdução
Apresentação
A ética protestante e o "espírito" do capitalismo , ensaio clássico de Max Weber (1864-1920) sobre a ética puritana e a cultura capitalista moderna, foi publicado nos anos de 1904 e 1905, na revista alemã ´Archiv für Sozialwissenschaft´. Uma segunda versão apareceria em 1920, ampliada e revista pelo próprio autor, que adicionou passagens ao ensaio, aprimorou conceitos e formulou outros -como os de desencantamento do mundo e ação racional-, fez ajustes terminológicos e incluiu numerosas notas de rodapé. Esta edição reúne num só texto as duas versões do livro de Weber: o ensaio original de 1904 e os acréscimos de 1920, A identidade dos dois textos é preservada: as passagens da segunda versão são destacadas entre colchetes, permitindo uma nova leitura àqueles que já conhecem o estudo e, uma leitura completa aos que têm o primeiro contato com ele. A nova tradução (feita do alemão), promove, assim, a retomada crítica da versão original ao aliá-la à versão definitiva, realizada na plena maturidade intelectual e pessoal do autor. O livro analisa a gênese da cultura capitalista moderna e sua relação com a religiosidade puritana adotada por igrejas e seitas protestantes dos séculos XVI e XVII: a partir de observações estatísticas, Weber constatou que os protestantes de sua época eram, de um modo geral, mais bem-sucedidos nos negócios do que os católicos. Os últimos ajustes ao estudo foram feitos no ano da morte do autor, quando o texto passou a fazer parte dos Ensaios reunidos de sociologia da religião.
Introdução -
Ao estudarmos qualquer problema da história universal, o produto da moderna civilização européia estará sujeito à indagação de quais combinações de circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilização ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como queremos crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e valor universais.
Apenas no Ocidente existe uma ciência num estágio de desenvolvimento que reconhecemos, hoje, como válido. O conhecimento empírico, as reflexões sobre o universo e a vida, a sabedoria filosófica e teológica das mais profundas não estão aqui confinadas, embora no caso desta última o pleno desenvolvimento da teologia sistemática deva ser creditado ao cristianismo sob a influência do helenismo, uma vez que dela houve apenas fragmentos no islamismo e numas poucas seitas hindus. Em poucas palavras, conhecimento e observação de grande finura sempre existiram em toda parte, principalmente na índia, na China, na Babilônia e no Egito. Mas à astronomia da Babilônia e às demais faltavam – o que torna seu desenvolvimento mais assombroso – as bases matemáticas recebidas primeiramente dos gregos. A geometria hindu não tinha provas racionais, que foram outro produto do intelecto grego, criador também da mecânica e da física. As ciências naturais da índia, embora de todo desenvolvidas sobre a observação, careciam de método de experimentação o que foi, longe de seus alvores na Antiguidade, um produto essencialmente do Renascimento, assim como o moderno laboratório. A medicina, especialmente na índia, embora altamente desenvolvida quanto às técnicas empíricas, carecia de fundamentos biológicos e particularmente bioquímicos. Uma química racional tem estado ausente de todas as áreas dá cultura que não a ocidental.
A erudição histórica chinesa, altamente desenvolvida, não possuía o método de Tucídides. É verdade que Maquiavel teve predecessores na índia; mas todo o pensamento político da índia carecia de um método sistematizado como o de Aristóteles e, de fato, de conceitos racionais. Nem todas as antecipações da índia (Escola de Mimamsa), nem as extensas codificações, especialmente no Oriente Próximo, nem todos os livros de leis da índia e de outros lugares possuíam formas estritamente sistemáticas de pensamento, tão essenciais a uma jurisprudência racional como a lei romana e o direito ocidental por ela influenciado. Uma estrutura como o cânone jurídico é conhecida apenas no Ocidente.
A mesma observação é válida no tocante às artes. O ouvido musical dos outros povos era, provavelmente, de sensibilidade até mais desenvolvida do que o nosso; e certamente não o era menos. A música polifônica de diversos tipos era amplamente distribuída sobre o planeta. Diversos instrumentos tocando em conjunto, assim como o canto de partes da música, existiram em toda parte. Todos os nossos intervalos racionais de tons eram conhecidos e calculados. Mas a música de harmonia racional tanto o contraponto quanto a harmonia, a formação do tom básico sobre três tríades com o terceiro harmônico; nossa cromática e enarmônica, não interpretadas em termos de espaço mas, desde o Renascimento, em termos de harmonia; nossa orquestra, com seu núcleo de quarteto de cordas e a organização do conjunto de sopros; nosso acompanhamento de graves; nosso sistema de notação, que tornou possível a composição e o moderno trabalho musical e, pois, a sua própria sobrevivência; nossas sonatas, sinfonias, óperas e, finalmente, nossos instrumentos fundamentais que são expressão daquelas: o órgão, o piano, o violino etc. Todas essas coisas são conhecidas apenas no Ocidente, embora a música descritiva, a poesia tonal, as alterações de tonalidade e cromáticas tenham existido como meios de expressão de várias tradições musicais.
Em arquitetura, o arco ogival tem sido usado em toda parte como meio de decoração, na Antiguidade e na Ásia; presumivelmente, a combinação do arco ogival com a abóbada em cruz não era desconhecida no Oriente. Mas o uso racional da abóbada gótica como meio de distribuição de cargas e cobertura de espaços de todas as formas e, como um princípio construtivo de grandes edificações monumentais e como fundamento de um estilo, extensivo à escultura e à pintura, como as criadas pela Idade Média, não ocorreu em nenhum outro lugar. As bases técnicas de nossa arquitetura nos vieram do Oriente. Nelas porém faltava a solução do problema da cúpula e o tipo de racionalização de toda a as artes – no caso da pintura, a utilização racional das linhas e a perspectiva espacial que o Renascimento criou. Houve a impressão na China, mas a literatura impressa, projetada apenas para a impressão e por ela possibilitada e, acima de tudo, a Imprensa e os periódicos, apareceram só no Ocidente.
As instituições de educação superior, de todos os tipos possíveis, mesmo algo semelhantes, superficialmente, às nossas Universidades, ou pelo menos, às nossas Academias, existiram na China e no Islão. Mas a busca racional, sistemática e especializada da ciência por parte de pessoal treinado e especializado existiu somente no Ocidente, num sentido que se aproxima de seu papel dominante na nossa cultura atual. Isso é verdadeiro, acima de tudo, no tocante ao funcionário público treinado, pilar tanto do Estado moderno quanto da vida econômica do Ocidente. Este constitui um tipo do qual antigamente só se encontraram sugestões, que nunca apresentaram, nem remotamente, a importância que tem no presente para a ordem social. Naturalmente o funcionário público, mesmo o especializado, é um constituinte muito antigo das mais diversas sociedades. Mas nenhuma época e nenhum país experimentaram jamais, no mesmo sentido do Ocidente atual, a absoluta e completa dependência de sua existência, de suas condições econômicas, políticas e técnicas, de uma organização de funcionários especialmente treinados. As funções mais importantes da vida diária da sociedade são desempenhadas por funcionários públicos treinados técnica, comercial, e acima de tudo legalmente.
A organização de grupos políticos e sociais era uma coisa comum na estrutura feudal. Mas mesmo o estado feudal do rex et regnum no sentido ocidental só foi conhecido na nossa cultura. Os parlamentos de representantes eleitos periodicamente, com a liderança de demagogos e chefes de partido como ministros responsáveis perante o parlamento, são peculiaridade nossa, embora naturalmente sempre tenha havido partidos no mundo todo, no sentido de uma organização que exerce influência e busca ganhar o controle do poder político. De fato, o próprio Estado, tomado como uma associação política com uma constituição racionalmente redigida, leis racionalmente ordenadas é uma administração coordenada por regras racionais ou leis, administrado por funcionários treinados, é conhecido, nessa combinação de características, apenas no Ocidente, a despeito de todas as outras que dele se aproximam.
E o mesmo é verdade também para a mais decisiva força da nossa vida moderna: o capitalismo. O impulso para o ganho, a persecução do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem, em si mesma, nada que ver com o capitalismo. Tal impulso existe e sempre existiu entre garçons, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários desonestos, soldados, nobres, cruzados, apostadores, mendigos etc... Pode se dizer que tem sido comum a toda sorte e condição humanas em todos os tempos e em todos os países da Terra, sempre que se tenha apresentado a possibilidade objetiva para tanto. É coisa do jardim de infância da história cultural a noção de essa idéia ingênua de capitalismo deva ser eliminada definitivamente. A ganância ilimitada de ganho não se identifica, nem de longe, com o capitalismo, e menos ainda com seu “espírito”. O capitalismo, pode eventualmente se identificar com a restrição, ou pelo menos com uma moderação racional desse impulso irracional. O capitalismo, porém identifica se com a busca do lucro, do lucro sempre renovado por meio da empresa permanente, capitalista e racional. Pois assim deve ser: numa ordem completamente capitalista da sociedade, uma empresa individual que não tirasse vantagem das oportunidades de obter lucros estaria condenada à extinção.
Definamos agora nossos termos com uma precisão algo maior do que a usual. Definiremos como ação econômica capitalista aquela que repousa na expectativa de lucros pela utilização das oportunidades de troca, isto é, nas possibilidades (formalmente) pacíficas de lucro. A aquisição pela força, (formalmente e de fato) segue suas próprias leis particulares, e não seria conveniente, embora não se possa proibi-lo, colocá-la na mesma categoria da ação que é, em última análise, orientada para o lucro por meio da troca. Onde a aquisição capitalista é obtida racionalmente, a ação correspondente é ajustada por cálculo em termos de capital. Isso significa que a ação é adaptada à utilização sistemática dos recursos ou dos serviços pessoais como meio de aquisição, de modo que, ao término de um período de negócios, o balanço da empresa, em termos de dinheiro (ou, no caso de empresa permanente, o valor monetário estimado de seus bens) exceda o capital, isto é, o valor estimado dos meios materiais de produção utilizados para â aquisição na troca. Não importa que isso envolva uma quantidade de bens in natura confiados a um caixeiro viajante, cuja renda podem ser outros bens in natura adquiridos em troca ou que envolva uma empresa manufatureira cujos ativos sejam prédios, máquinas, liquidez monetária, matéria prima, produtos completa ou parcialmente acabados, tudo contabilizado contra os compromissos. O fato importante é que o cálculo do capital é sempre feito em dinheiro, quer pelos modernos métodos de contabilidade, quer por qualquer outro método, por mais primitivo e grosseiro que seja. Tudo é feito em termos de balanços: um balanço inicial no começo da empresa; outro antes de qualquer decisão individual, como cálculo de sua provável lucratividade e um balanço final para apurar o lucro obtido.
Por exemplo, o balanço inicial de uma transação por commenda pode determinar um valor monetário acordado dos bens negociados (até que não esteja ainda expresso em dinheiro), e o balanço final poderá dar uma estimativa básica da distribuição dos lucros e perdas no final. Quando a transação é racional, o cálculo é a base de toda ação individual dos parceiros. O fato de poder não existir um cálculo realmente preciso de o procedimento ser mera adivinhação ou simplesmente tradicional e convencional ocorre ainda hoje em todas as formas de empreendimento capitalista nas quais as circunstâncias não exijam grande precisão. Contudo, esses pontos afetam apenas o grau da racionalidade da aquisição capitalista.
Para os propósitos desta concepção, o importante é ocorrer um verdadeiro ajuste da ação econômica no cotejo entre o dinheiro que entra e as despesas, não importando o quão primitiva possa ser sua forma. Ora, nesse sentido, o capitalismo e as empresas capitalistas, inclusive com uma considerável racionalização do cálculo, existiram em todos os países civilizados do planeta, até onde a documentação econômica nos permite avaliar; isso na China, na índia, na Babilônia, no Egito, na Antiguidade Mediterrânea e na Idade Média tanto quanto nos tempos modernos. O que havia não eram meramente empreendimentos isolados, mas empresas econômicas inteiramente dependentes da contínua renovação dos empreendimentos capitalistas e até de operações contínuas. Contudo, o comércio em especial não teve, por longo tempo, a continuidade dos nossos empreendimentos atuais, mas consistiu essencialmente numa série de empreendimentos individuais. Foi só gradualmente que tais atividades, mesmo as dos grandes comerciantes, adquiriram uma coerência interna (com a urbanização de ramificações etc.) Em todos os casos, a empresa capitalista e o empresário capitalista, não só como ocasionais, mas como empreendimentos estáveis, são muito antigos e difundidos pelo mundo.
Contudo, o Ocidente desenvolveu o capitalismo tanto em sua dimensão quantitativa, sem abrir mão daquele desenvolvimento, como em tipos, formas e direções que nunca existiram antes em parte alguma. Pelo mundo inteiro têm havido comerciantes, atacadistas e varejistas, locais e envolvidos em comércio exterior. Têm sido feitos empréstimos de todo tipo e tem havido bancos com as mais diversas funções, comparáveis, digamos, aos nossos do século XVI. Empréstimos marítimos, commenda, transações e associações semelhantes à Kommanditgesellschaft tem sido muito disseminados, mesmo como negócio constante. Por onde existiram financiamentos monetários de corporações, apareceram os agiotas, como na Babilônia, na Grécia, na índia, na China, e em Roma. Financiaram guerras e piratarias, contratos e operações de construção de todo tipo. Na política de ultramar, funcionaram como empreendedores colonialistas, como plantadores escravistas ou com trabalho direta ou indiretamente forçado, arrendaram domínios, repartições e, sobretudo tudo, impostos. Financiaram líderes partidários em eleições e condottieri em guerras civis. E finalmente, tem sido especuladores das oportunidades de ganho monetário de todos os tipos. Esse tipo de empreendedor, o aventureiro capitalista, existiu em toda parte. Suas atividades, à exceção do comércio e do crédito, assim como das transações bancárias, eram de caráter predominantemente irracional e especulativo, ou direcionado para a aquisição pela força, sobretudo a aquisição do botim, tanto na guerra como na exploração fiscal contínua das pessoas a eles sujeitas.
O capitalismo dos patrocinadores, dos grandes especuladores, dos caçadores de concessões e muito do moderno capitalismo financeiro, mesmo em tempos de paz mas, acima de tudo, aquele capitalismo envolvido com a exploração da guerra, ostenta essa marca mesmo nos modernos países do Ocidente, e uma parte – e apenas uma parte – do grande comércio internacional está estritamente relacionado com isso, hoje como sempre.
Modernamente, porém, o Ocidente desenvolveu, além desse, uma forma muito diferente de capitalismo, que nunca havia aparecido antes: a organização capitalista racional do trabalho livre (pelo menos formalmente). Dele encontramos apenas sugestões noutras partes. Até a organização do trabalho escravo encontrou um nível considerável de racionalidade apenas nas plantações, e em num grau muito pequeno na Ergasteria da Antiguidade. Nos feudos, as oficinas, a indústria caseira e as propriedades movidas pelo trabalho servil foram provavelmente ainda menos desenvolvidas. E mesmo as indústrias caseiras reais com trabalho livre existiram comprovadamente em apenas poucos casos isolados fora do Ocidente. O uso freqüente de trabalhadores diaristas levou; em pouquíssimos casos, – especialmente em monopólios estatais que eram muito diferentes da moderna organização industrial; – à criação de organizações manufatureiras, mas nunca à organização racional do aprendizado das habilidades como na nossa Idade Média.
A organização industrial racional, voltada para um mercado regular e não para as oportunidades especulativas de lucro, tanto políticas como irracionais, não é, contudo, a única peculiaridade do capitalismo ocidental. A moderna organização racional das empresas capitalistas não teria sido possível sem dois outros fatores importantes em seu desenvolvimento: a separação dos negócios da moradia da família, fato que domina completamente a vida econômica e, estritamente ligada a isso, uma contabilidade racional. A separação espacial entre os locais de trabalho e os de residência existia em outros lugares, como nos bazares orientais ou nas Ergasteria de outras culturas. O desenvolvimento de associações capitalistas auto suficientes é também encontrado no Extremo Oriente, no Oriente Próximo e na Antiguidade. Comparadas porém com a independência das modernas empresas de negócios, constituem se apenas em tímidos primórdios. A razão disso era, particularmente, que estavam completamente ausentes, ou estavam apenas começando a se desenvolver, os requisitos indispensáveis de sua independência, como nossa contabilidade racional e nossa separação legal entre as propriedades particulares e as da empresa. A tendência generalizada era o crescimento das empresas aquisitivas como parte de uma casa real ou feudal – do oikos – que era, como o percebeu Rodbertus, com toda a sua semelhança superficial, um desenvolvimento basicamente diferente, e até oposto.
Contudo, todas essas peculiaridades do capitalismo ocidental derivaram seu significado, em última análise, apenas de sua associação com a organização capitalista do trabalho. Mesmo o que é geralmente chamado de comercialização – o desenvolvimento de títulos negociáveis e a racionalização da especulação, das trocas etc., estão a ela ligadas. De fato, sem a organização capitalista do trabalho, tudo isso, até onde fosse possível, não teria o mesmo significado, quanto à estrutura social e todos, os problemas específicos ocidentais da atualidade que daquela derivam. O cálculo exato, base para as demais coisas, só é possível se baseado no trabalho livre.
E assim como o mundo não conheceu uma organização racional do trabalho fora do Ocidente moderno, ou talvez por causa disso mesmo, tampouco conheceu um socialismo racional. Na verdade, existiram a economia cívica, uma política de abastecimento cívico, o mercantilismo, a política de bem estar social dos príncipes, o racionamento, a regulamentação da vida econômica, o protecionismo e teorias do laissez faire (como na China). O mundo conheceu também experiências socialistas e comunistas de vário s tipos: familiar, religioso, militar, o socialismo de Estado (no Egito), cartéis monopolistas, e organizações de consumidores. Mas embora tenha havido em toda parte privilégios de mercado urbano, companhias, corporações e toda sorte de diferenças legais entre a cidade e o campo, o conceito de cidadão e o de burguesia não existiram fora do moderno Ocidente. Do mesmo modo, o proletariado como classe não poderia ter existido, pois não existia uma organização racional do trabalho livre sob disciplina metodizada. As lutas de classe entre as parcelas credoras e devedoras; proprietários rurais e sem terra, servos ou meeiros; interesses comerciais e consumidores ou senhores de terras existiram em toda parte nas mais diversas combinações. Mas mesmo as lutas medievais entre empreiteiros e seus trabalhadores existiram, noutros lugares, apenas no começo. O atual conflito entre o empreendedor industrial de grande escala e os trabalhadores livres era totalmente ausente. E por isso, não poderia haver os problemas com o socialismo.
Assim, numa história universal da cultura, mesmo de um ponto de vista puramente econômico, não é, em última análise, o desenvolvimento da atividade capitalista como tal, diferindo nas diversas culturas apenas quanto à forma: o tipo aventureiro, o capitalismo do comércio, da guerra, da política ou da administração como fontes de lucro e que é o ponto chave. É antes a origem desse sóbrio capitalismo burguês com sua organização racional do trabalho. Ou, em termos de história da cultura, o problema é o da origem da classe burguesa ocidental e suas peculiaridades, um problema que está com certeza estritamente ligado ao da origem da organização capitalista do trabalho, embora não se trata da mesma coisa. Pois os burgueses como classe existiam antes dó desenvolvimento das modernas formas peculiares do capitalismo, embora de fato, apenas no hemisfério ocidental.
À primeira vista, a forma especial do moderno capitalismo ocidental teria sido fortemente influenciada pelo desenvolvimento das possibilidades técnicas. Sua racionalidade é hoje essencialmente dependente da calculabilidade dos fatores técnicos mais importantes. Mas isso significa basicamente que é dependente da ciência moderna, especialmente das ciências naturais baseadas na matemática e em experimentações exatas e racionais. Por outro lado, o desenvolvimento de tais ciências e das técnicas que nelas se apóiam recebe, agora importante estímulo dos interesses capitalistas quanto a suas aplicações econômicas práticas. É verdade que a origem da ciência ocidental não pode ser atribuída a tais interesses. O cálculo, mesmo com decimais, e a álgebra, foram adotados na índia, onde o sistema decimal foi inventado; mas seu uso foi desenvolvido apenas pelo capitalismo no Ocidente, pois na índia isso não levou à moderna aritmética e contabilidade. Nem podemos dizer que as origens da matemática e da mecânica tenham sido determinadas pelos interesses capitalistas. Mas a utilização técnica do conhecimento científico, tão importante para as condições de vida da massa do povo, foi certamente incentivada pelas considerações econômicas, que lhe eram extremamente favoráveis no mundo ocidental. Esse incentivo, porém, derivava das peculiaridades da estrutura social no Ocidente. Devemos mesmo perguntar de qual parte de tais estruturas derivava, uma vez que nem todas poderiam ter sido da mesma importância.
Entre os fatores de importância incontestável estão as estruturas racionais das leis e da administração, pois que o moderno capitalismo racional não necessita apenas dos meios técnicos de produção, mas também de um sistema legal calculável e de uma administração baseada em termos de regras formais. Sem isso, o capitalismo aventureiro e de comércio especulativo e todo tipo de capitalismo politicamente determinado seriam possíveis, mas não o empreendimento racional da iniciativa privada, com capital fixo e cálculos certeiros. Tais tipos de sistemas legais e de administração, num grau relativo de perfeição legal e formal, têm sido disponíveis para a atividade econômica apenas no Ocidente. Devemos pois perguntar de onde se originou esse sistema legal. Entre outras circunstâncias, o interesse capitalista, por sua vez, sem dúvida contribuiu para preparar o caminho à predominância do direito e, à administração a de uma classe de juristas especialmente treinados na legislação nacional, embora não tenha sido o único nem o principal. Forças bem diferentes atuaram no seu desenvolvimento. E porque os interesses capitalistas não fizeram o mesmo na índia ou na China? Porque lá o desenvolvimento científico, artístico, político ou econômico não tomou o mesmo caminho de racionalização que é peculiar ao Ocidente? Porque em todos os casos acima o problema é o racionalismo peculiar e específico da cultura ocidental. Ora, nesses termos, pode-se entender coisas muito diferentes, como a discussão a seguir mostrará repetidamente. Temos, por exemplo, a racionalização da contemplação mística, atitude que, vista sob outro prisma da vida, é especialmente irracional, e temos também como temos as racionalizações da vida econômica, da técnica, da pesquisa científica, do treino militar, do direito e da administração. Além disso, cada um desses campos pode ser racionalizado em termos consoantes com valores últimos e finalidades muito diferentes, e o que é racional de um certo ponto de vista, poderá ser irracional de outro. Racionalizações dos mais variados tipos têm existido em vários setores da vida, em todas as áreas da cultura. Para caracterizar suas diferenças de um ponto de vista da história da cultura é necessário saber quais setores foram racionalizados e em que direção. Por isso, nossa primeira preocupação é desvendar e explicar a gênese e a peculiaridade do racionalismo ocidental e, por esse enfoque, sua forma moderna.
Cada tentativa de explicação deve, reconhecendo a importância fundamental do fator econômico, tomar em consideração, acima de tudo as condições econômicas. Mas ao mesmo tempo, não se deve deixar de considerar a correlação oposta. E isso porque o desenvolvimento do racionalismo econômico é parcialmente dependente da técnica e do direito racionais, mas é ao mesmo tempo determinado pela habilidade e disposição do homem em adotar certos tipos de conduta racional prática. Quando tais tipos de conduta têm sido obstruídos por obstáculos espirituais, o desenvolvimento da conduta econômica racional encontrou também séria resistência interna. As forças mágicas e religiosas e as idéias éticas de dever nelas baseadas têm estado sempre, no passado, entre as mais importantes influências formativas da conduta. Nos estudos aqui coletados, ocuparemos-nos de tais forças.
Dois ensaios anteriores foram colocados no início, como tentativa de abordar um ponto importante do problema que é geralmente mais difícil de ser apanhado: a influência de certas idéias religiosas no desenvolvimento de um espírito econômico, ou o ethos de um sistema econômico. Nesse caso estamos lidando com a conexão do espírito da moderna vida econômica com a ética racional da ascese protestante. Assim, tratamos aqui apenas de um lado do encadeamento causal. Os estudos posteriores sobre Ética Econômica das Religiões Mundiais tentam uma visão geral das relações entre as mais importantes religiões, a vida econômica e a estratificação social de seu meio, para seguir ambas as relações causais até onde for necessário para achar pontos de comparação com o desenvolvimento ocidental.
Só desse modo se pode tentar uma avaliação causal daqueles elementos da ética econômica das religiões ocidentais que as diferenciam das outras, na esperança de obter ao menos um grau tolerável de aproximação. Daí tais estudos não terem a pretensão de serem análises culturais completas, ainda que breves. Pelo contrário, enfatizam propositalmente, em cada cultura, os elementos que as diferenciam da civilização ocidental. São eles, pois, orientados definitivamente para os problemas que parecem importantes para a compreensão da cultura ocidental desse ponto de vista. Com tal objetivo em mente, não seria possível qualquer outro procedimento. Mas, para evitar mal entendidos, devemos dar uma ênfase especial às limitações do nosso propósito.
Por outro lado, os não iniciados devem ser, no mínimo, alertados para não exagerar a importância de tais investigações. O sinólogo, indólogo, o semitólogo ou egiptólogo não encontrarão aqui, logicamente, nenhuma novidade. Esperamos apenas que não encontrem nada de definitivamente errado nos pontos essenciais. O autor não sabe até que ponto um não especialista pôde se aproximar desse ideal. É bem evidente que qualquer um que seja obrigado a confiar em traduções e, mais ainda, no uso e avaliação de fontes monumentais, documentais ou literárias, deve se valer de literatura específica, muitas vezes controvertida, e cujos méritos não é capaz de avaliar corretamente; tal escritor só pode achar modesto o valor do seu trabalho. E, ademais, a quantidade de traduções disponíveis de fontes verdadeiras (isto é, de inscrições e documentos) é ainda muito pequena, especialmente em relação à China, em comparação com tudo o que existe de importante. De tudo isso se depreende o caráter decididamente provisório destes estudos, especialmente das partes relativa à Ásia. Apenas o especialista tem competência para um julgamento definitivo. E naturalmente, os presentes estudos foram escritos apenas porque ainda não foram feitos estudos especializados com este intuito particular e deste particular ponto de vista. Eles estão destinados a ser ultrapassados, num sentido muito mais importante, digamos, que um trabalho científico. Mas uma invasão de outros campos específicos, por mais reprovável que possa ser não pode ser evitada num estudo comparativo; e disso se devem assumir as conseqüências, resignando se às grandes dúvidas quanto ao grau de sucesso alcançado.
A moda e o zelo dos literati nos faz considerar, hoje, o especialista como dispensável, ou relegá-lo à posição subalterna de observador. Quase todas as ciências devem algo aos diletantes, com freqüência pontos de vista muito valiosos. O diletantismo porém, como princípio, seria o fim da ciência. Aquele que tiver vontade de ver pode ir ao cinema, embora hoje lhe seja também oferecido, fartamente, o presente campo de investigação na forma literária. Nada está mais longe destes estudos, profundamente sérios, que tal atitude. E posso acrescentar, quem quiser ouvir um sermão, que vá a um convento. _A questão do valor relativo das culturas aqui comparadas, não recebe uma palavra sequer. É bem verdade que os caminhos do destino humano só podem amedrontar a quem dele observa apenas um segmento. Mas será oportuno que guarde para si a esses pequenos comentários pessoais, como se faz à vista do mar ou de montanhas majestosas, a menos que se ache com vocação e capacidade para lhes dar expressão artística ou forma profética. Em muitos outros casos, a volumosa conversa sobre intuição nada mais faz senão ocultar uma falta de perspectiva em relação ao objeto, que merece o mesmo julgamento que a semelhante falta de perspectiva para com o homem.
É necessária uma justificativa para o fato de não ter sido utilizado o material etnográfico numa extensão compatível com o valor que sua contribuição naturalmente mereceria em qualquer investigação profunda, especialmente quanto às religiões asiáticas. Tal limitação não foi apenas imposta pelo restrito potencial humano de trabalho. A omissão pareceu nos permissível por estarmos aqui, necessariamente, tratando da ética religiosa das classes que foram as vigas mestras da cultura em seus respectivos países. O que interessa é a influência que sua conduta teve. É bem verdade que esta só pode ser completamente conhecida em todos os detalhes quando comparada com a etnografia e com o folclore. Devemos pois admitir expressamente e enfatizar que essa é uma falha a que o etnógrafo porá, legitimamente, objeções. Espero contribuir de algum modo para o preenchimento dessa lacuna, com um estudo sistemático da Sociologia da Religião. Tal empreendimento teria extrapolado os limites desta investigação e de seu propósito circunscrito. Ela teve de se contentar em trazer à luz os pontos de comparação com as nossas religiões ocidentais, tanto quanto o possível.
Por fim, podemos fazer referência ao lado antropológico do problema. Quando achamos, repetidamente, mesmo em setores da vida aparentemente independentes, que certos tipos de racionalização se desenvolveram no Ocidente, e só aqui no Ocidente, seria natural suspeitar que a razão mais importante das diferenças estivesse na hereditariedade. O autor admite estar inclinado a pensar que a importância da hereditariedade biológica seja muito grande. Mas apesar dos notáveis achados da pesquisa antropológica, não vejo, até o presente, como medir, exata ou aproximadamente, quer a extensão, quer, sobretudo, a forma de sua influência no desenvolvimento aqui investigado. Deve ser uma das primeiras tarefas da investigação sociológica e histórica analisar todas as influências e relações causais que possam ser explicadas satisfatoriamente em termos de reações ao meio ambiente. Só então, e quando a neurologia e psicologia raciais comparativas tiverem progredido além dos atuais e de certo modo promissores estágios, poderemos esperar por uma probabilidade de resposta satisfatória para essa questão. Por ora, essa condição me parece não existir, e um apelo à hereditariedade envolveria assim uma renúncia prematura à possibilidade de um conhecimento atingível agora, e deslocaria o problema para fatores ainda desconhecidos no presente.
A ética protestante e o "espírito" do capitalismo , ensaio clássico de Max Weber (1864-1920) sobre a ética puritana e a cultura capitalista moderna, foi publicado nos anos de 1904 e 1905, na revista alemã ´Archiv für Sozialwissenschaft´. Uma segunda versão apareceria em 1920, ampliada e revista pelo próprio autor, que adicionou passagens ao ensaio, aprimorou conceitos e formulou outros -como os de desencantamento do mundo e ação racional-, fez ajustes terminológicos e incluiu numerosas notas de rodapé. Esta edição reúne num só texto as duas versões do livro de Weber: o ensaio original de 1904 e os acréscimos de 1920, A identidade dos dois textos é preservada: as passagens da segunda versão são destacadas entre colchetes, permitindo uma nova leitura àqueles que já conhecem o estudo e, uma leitura completa aos que têm o primeiro contato com ele. A nova tradução (feita do alemão), promove, assim, a retomada crítica da versão original ao aliá-la à versão definitiva, realizada na plena maturidade intelectual e pessoal do autor. O livro analisa a gênese da cultura capitalista moderna e sua relação com a religiosidade puritana adotada por igrejas e seitas protestantes dos séculos XVI e XVII: a partir de observações estatísticas, Weber constatou que os protestantes de sua época eram, de um modo geral, mais bem-sucedidos nos negócios do que os católicos. Os últimos ajustes ao estudo foram feitos no ano da morte do autor, quando o texto passou a fazer parte dos Ensaios reunidos de sociologia da religião.
Introdução -
Ao estudarmos qualquer problema da história universal, o produto da moderna civilização européia estará sujeito à indagação de quais combinações de circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilização ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como queremos crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e valor universais.
Apenas no Ocidente existe uma ciência num estágio de desenvolvimento que reconhecemos, hoje, como válido. O conhecimento empírico, as reflexões sobre o universo e a vida, a sabedoria filosófica e teológica das mais profundas não estão aqui confinadas, embora no caso desta última o pleno desenvolvimento da teologia sistemática deva ser creditado ao cristianismo sob a influência do helenismo, uma vez que dela houve apenas fragmentos no islamismo e numas poucas seitas hindus. Em poucas palavras, conhecimento e observação de grande finura sempre existiram em toda parte, principalmente na índia, na China, na Babilônia e no Egito. Mas à astronomia da Babilônia e às demais faltavam – o que torna seu desenvolvimento mais assombroso – as bases matemáticas recebidas primeiramente dos gregos. A geometria hindu não tinha provas racionais, que foram outro produto do intelecto grego, criador também da mecânica e da física. As ciências naturais da índia, embora de todo desenvolvidas sobre a observação, careciam de método de experimentação o que foi, longe de seus alvores na Antiguidade, um produto essencialmente do Renascimento, assim como o moderno laboratório. A medicina, especialmente na índia, embora altamente desenvolvida quanto às técnicas empíricas, carecia de fundamentos biológicos e particularmente bioquímicos. Uma química racional tem estado ausente de todas as áreas dá cultura que não a ocidental.
A erudição histórica chinesa, altamente desenvolvida, não possuía o método de Tucídides. É verdade que Maquiavel teve predecessores na índia; mas todo o pensamento político da índia carecia de um método sistematizado como o de Aristóteles e, de fato, de conceitos racionais. Nem todas as antecipações da índia (Escola de Mimamsa), nem as extensas codificações, especialmente no Oriente Próximo, nem todos os livros de leis da índia e de outros lugares possuíam formas estritamente sistemáticas de pensamento, tão essenciais a uma jurisprudência racional como a lei romana e o direito ocidental por ela influenciado. Uma estrutura como o cânone jurídico é conhecida apenas no Ocidente.
A mesma observação é válida no tocante às artes. O ouvido musical dos outros povos era, provavelmente, de sensibilidade até mais desenvolvida do que o nosso; e certamente não o era menos. A música polifônica de diversos tipos era amplamente distribuída sobre o planeta. Diversos instrumentos tocando em conjunto, assim como o canto de partes da música, existiram em toda parte. Todos os nossos intervalos racionais de tons eram conhecidos e calculados. Mas a música de harmonia racional tanto o contraponto quanto a harmonia, a formação do tom básico sobre três tríades com o terceiro harmônico; nossa cromática e enarmônica, não interpretadas em termos de espaço mas, desde o Renascimento, em termos de harmonia; nossa orquestra, com seu núcleo de quarteto de cordas e a organização do conjunto de sopros; nosso acompanhamento de graves; nosso sistema de notação, que tornou possível a composição e o moderno trabalho musical e, pois, a sua própria sobrevivência; nossas sonatas, sinfonias, óperas e, finalmente, nossos instrumentos fundamentais que são expressão daquelas: o órgão, o piano, o violino etc. Todas essas coisas são conhecidas apenas no Ocidente, embora a música descritiva, a poesia tonal, as alterações de tonalidade e cromáticas tenham existido como meios de expressão de várias tradições musicais.
Em arquitetura, o arco ogival tem sido usado em toda parte como meio de decoração, na Antiguidade e na Ásia; presumivelmente, a combinação do arco ogival com a abóbada em cruz não era desconhecida no Oriente. Mas o uso racional da abóbada gótica como meio de distribuição de cargas e cobertura de espaços de todas as formas e, como um princípio construtivo de grandes edificações monumentais e como fundamento de um estilo, extensivo à escultura e à pintura, como as criadas pela Idade Média, não ocorreu em nenhum outro lugar. As bases técnicas de nossa arquitetura nos vieram do Oriente. Nelas porém faltava a solução do problema da cúpula e o tipo de racionalização de toda a as artes – no caso da pintura, a utilização racional das linhas e a perspectiva espacial que o Renascimento criou. Houve a impressão na China, mas a literatura impressa, projetada apenas para a impressão e por ela possibilitada e, acima de tudo, a Imprensa e os periódicos, apareceram só no Ocidente.
As instituições de educação superior, de todos os tipos possíveis, mesmo algo semelhantes, superficialmente, às nossas Universidades, ou pelo menos, às nossas Academias, existiram na China e no Islão. Mas a busca racional, sistemática e especializada da ciência por parte de pessoal treinado e especializado existiu somente no Ocidente, num sentido que se aproxima de seu papel dominante na nossa cultura atual. Isso é verdadeiro, acima de tudo, no tocante ao funcionário público treinado, pilar tanto do Estado moderno quanto da vida econômica do Ocidente. Este constitui um tipo do qual antigamente só se encontraram sugestões, que nunca apresentaram, nem remotamente, a importância que tem no presente para a ordem social. Naturalmente o funcionário público, mesmo o especializado, é um constituinte muito antigo das mais diversas sociedades. Mas nenhuma época e nenhum país experimentaram jamais, no mesmo sentido do Ocidente atual, a absoluta e completa dependência de sua existência, de suas condições econômicas, políticas e técnicas, de uma organização de funcionários especialmente treinados. As funções mais importantes da vida diária da sociedade são desempenhadas por funcionários públicos treinados técnica, comercial, e acima de tudo legalmente.
A organização de grupos políticos e sociais era uma coisa comum na estrutura feudal. Mas mesmo o estado feudal do rex et regnum no sentido ocidental só foi conhecido na nossa cultura. Os parlamentos de representantes eleitos periodicamente, com a liderança de demagogos e chefes de partido como ministros responsáveis perante o parlamento, são peculiaridade nossa, embora naturalmente sempre tenha havido partidos no mundo todo, no sentido de uma organização que exerce influência e busca ganhar o controle do poder político. De fato, o próprio Estado, tomado como uma associação política com uma constituição racionalmente redigida, leis racionalmente ordenadas é uma administração coordenada por regras racionais ou leis, administrado por funcionários treinados, é conhecido, nessa combinação de características, apenas no Ocidente, a despeito de todas as outras que dele se aproximam.
E o mesmo é verdade também para a mais decisiva força da nossa vida moderna: o capitalismo. O impulso para o ganho, a persecução do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem, em si mesma, nada que ver com o capitalismo. Tal impulso existe e sempre existiu entre garçons, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários desonestos, soldados, nobres, cruzados, apostadores, mendigos etc... Pode se dizer que tem sido comum a toda sorte e condição humanas em todos os tempos e em todos os países da Terra, sempre que se tenha apresentado a possibilidade objetiva para tanto. É coisa do jardim de infância da história cultural a noção de essa idéia ingênua de capitalismo deva ser eliminada definitivamente. A ganância ilimitada de ganho não se identifica, nem de longe, com o capitalismo, e menos ainda com seu “espírito”. O capitalismo, pode eventualmente se identificar com a restrição, ou pelo menos com uma moderação racional desse impulso irracional. O capitalismo, porém identifica se com a busca do lucro, do lucro sempre renovado por meio da empresa permanente, capitalista e racional. Pois assim deve ser: numa ordem completamente capitalista da sociedade, uma empresa individual que não tirasse vantagem das oportunidades de obter lucros estaria condenada à extinção.
Definamos agora nossos termos com uma precisão algo maior do que a usual. Definiremos como ação econômica capitalista aquela que repousa na expectativa de lucros pela utilização das oportunidades de troca, isto é, nas possibilidades (formalmente) pacíficas de lucro. A aquisição pela força, (formalmente e de fato) segue suas próprias leis particulares, e não seria conveniente, embora não se possa proibi-lo, colocá-la na mesma categoria da ação que é, em última análise, orientada para o lucro por meio da troca. Onde a aquisição capitalista é obtida racionalmente, a ação correspondente é ajustada por cálculo em termos de capital. Isso significa que a ação é adaptada à utilização sistemática dos recursos ou dos serviços pessoais como meio de aquisição, de modo que, ao término de um período de negócios, o balanço da empresa, em termos de dinheiro (ou, no caso de empresa permanente, o valor monetário estimado de seus bens) exceda o capital, isto é, o valor estimado dos meios materiais de produção utilizados para â aquisição na troca. Não importa que isso envolva uma quantidade de bens in natura confiados a um caixeiro viajante, cuja renda podem ser outros bens in natura adquiridos em troca ou que envolva uma empresa manufatureira cujos ativos sejam prédios, máquinas, liquidez monetária, matéria prima, produtos completa ou parcialmente acabados, tudo contabilizado contra os compromissos. O fato importante é que o cálculo do capital é sempre feito em dinheiro, quer pelos modernos métodos de contabilidade, quer por qualquer outro método, por mais primitivo e grosseiro que seja. Tudo é feito em termos de balanços: um balanço inicial no começo da empresa; outro antes de qualquer decisão individual, como cálculo de sua provável lucratividade e um balanço final para apurar o lucro obtido.
Por exemplo, o balanço inicial de uma transação por commenda pode determinar um valor monetário acordado dos bens negociados (até que não esteja ainda expresso em dinheiro), e o balanço final poderá dar uma estimativa básica da distribuição dos lucros e perdas no final. Quando a transação é racional, o cálculo é a base de toda ação individual dos parceiros. O fato de poder não existir um cálculo realmente preciso de o procedimento ser mera adivinhação ou simplesmente tradicional e convencional ocorre ainda hoje em todas as formas de empreendimento capitalista nas quais as circunstâncias não exijam grande precisão. Contudo, esses pontos afetam apenas o grau da racionalidade da aquisição capitalista.
Para os propósitos desta concepção, o importante é ocorrer um verdadeiro ajuste da ação econômica no cotejo entre o dinheiro que entra e as despesas, não importando o quão primitiva possa ser sua forma. Ora, nesse sentido, o capitalismo e as empresas capitalistas, inclusive com uma considerável racionalização do cálculo, existiram em todos os países civilizados do planeta, até onde a documentação econômica nos permite avaliar; isso na China, na índia, na Babilônia, no Egito, na Antiguidade Mediterrânea e na Idade Média tanto quanto nos tempos modernos. O que havia não eram meramente empreendimentos isolados, mas empresas econômicas inteiramente dependentes da contínua renovação dos empreendimentos capitalistas e até de operações contínuas. Contudo, o comércio em especial não teve, por longo tempo, a continuidade dos nossos empreendimentos atuais, mas consistiu essencialmente numa série de empreendimentos individuais. Foi só gradualmente que tais atividades, mesmo as dos grandes comerciantes, adquiriram uma coerência interna (com a urbanização de ramificações etc.) Em todos os casos, a empresa capitalista e o empresário capitalista, não só como ocasionais, mas como empreendimentos estáveis, são muito antigos e difundidos pelo mundo.
Contudo, o Ocidente desenvolveu o capitalismo tanto em sua dimensão quantitativa, sem abrir mão daquele desenvolvimento, como em tipos, formas e direções que nunca existiram antes em parte alguma. Pelo mundo inteiro têm havido comerciantes, atacadistas e varejistas, locais e envolvidos em comércio exterior. Têm sido feitos empréstimos de todo tipo e tem havido bancos com as mais diversas funções, comparáveis, digamos, aos nossos do século XVI. Empréstimos marítimos, commenda, transações e associações semelhantes à Kommanditgesellschaft tem sido muito disseminados, mesmo como negócio constante. Por onde existiram financiamentos monetários de corporações, apareceram os agiotas, como na Babilônia, na Grécia, na índia, na China, e em Roma. Financiaram guerras e piratarias, contratos e operações de construção de todo tipo. Na política de ultramar, funcionaram como empreendedores colonialistas, como plantadores escravistas ou com trabalho direta ou indiretamente forçado, arrendaram domínios, repartições e, sobretudo tudo, impostos. Financiaram líderes partidários em eleições e condottieri em guerras civis. E finalmente, tem sido especuladores das oportunidades de ganho monetário de todos os tipos. Esse tipo de empreendedor, o aventureiro capitalista, existiu em toda parte. Suas atividades, à exceção do comércio e do crédito, assim como das transações bancárias, eram de caráter predominantemente irracional e especulativo, ou direcionado para a aquisição pela força, sobretudo a aquisição do botim, tanto na guerra como na exploração fiscal contínua das pessoas a eles sujeitas.
O capitalismo dos patrocinadores, dos grandes especuladores, dos caçadores de concessões e muito do moderno capitalismo financeiro, mesmo em tempos de paz mas, acima de tudo, aquele capitalismo envolvido com a exploração da guerra, ostenta essa marca mesmo nos modernos países do Ocidente, e uma parte – e apenas uma parte – do grande comércio internacional está estritamente relacionado com isso, hoje como sempre.
Modernamente, porém, o Ocidente desenvolveu, além desse, uma forma muito diferente de capitalismo, que nunca havia aparecido antes: a organização capitalista racional do trabalho livre (pelo menos formalmente). Dele encontramos apenas sugestões noutras partes. Até a organização do trabalho escravo encontrou um nível considerável de racionalidade apenas nas plantações, e em num grau muito pequeno na Ergasteria da Antiguidade. Nos feudos, as oficinas, a indústria caseira e as propriedades movidas pelo trabalho servil foram provavelmente ainda menos desenvolvidas. E mesmo as indústrias caseiras reais com trabalho livre existiram comprovadamente em apenas poucos casos isolados fora do Ocidente. O uso freqüente de trabalhadores diaristas levou; em pouquíssimos casos, – especialmente em monopólios estatais que eram muito diferentes da moderna organização industrial; – à criação de organizações manufatureiras, mas nunca à organização racional do aprendizado das habilidades como na nossa Idade Média.
A organização industrial racional, voltada para um mercado regular e não para as oportunidades especulativas de lucro, tanto políticas como irracionais, não é, contudo, a única peculiaridade do capitalismo ocidental. A moderna organização racional das empresas capitalistas não teria sido possível sem dois outros fatores importantes em seu desenvolvimento: a separação dos negócios da moradia da família, fato que domina completamente a vida econômica e, estritamente ligada a isso, uma contabilidade racional. A separação espacial entre os locais de trabalho e os de residência existia em outros lugares, como nos bazares orientais ou nas Ergasteria de outras culturas. O desenvolvimento de associações capitalistas auto suficientes é também encontrado no Extremo Oriente, no Oriente Próximo e na Antiguidade. Comparadas porém com a independência das modernas empresas de negócios, constituem se apenas em tímidos primórdios. A razão disso era, particularmente, que estavam completamente ausentes, ou estavam apenas começando a se desenvolver, os requisitos indispensáveis de sua independência, como nossa contabilidade racional e nossa separação legal entre as propriedades particulares e as da empresa. A tendência generalizada era o crescimento das empresas aquisitivas como parte de uma casa real ou feudal – do oikos – que era, como o percebeu Rodbertus, com toda a sua semelhança superficial, um desenvolvimento basicamente diferente, e até oposto.
Contudo, todas essas peculiaridades do capitalismo ocidental derivaram seu significado, em última análise, apenas de sua associação com a organização capitalista do trabalho. Mesmo o que é geralmente chamado de comercialização – o desenvolvimento de títulos negociáveis e a racionalização da especulação, das trocas etc., estão a ela ligadas. De fato, sem a organização capitalista do trabalho, tudo isso, até onde fosse possível, não teria o mesmo significado, quanto à estrutura social e todos, os problemas específicos ocidentais da atualidade que daquela derivam. O cálculo exato, base para as demais coisas, só é possível se baseado no trabalho livre.
E assim como o mundo não conheceu uma organização racional do trabalho fora do Ocidente moderno, ou talvez por causa disso mesmo, tampouco conheceu um socialismo racional. Na verdade, existiram a economia cívica, uma política de abastecimento cívico, o mercantilismo, a política de bem estar social dos príncipes, o racionamento, a regulamentação da vida econômica, o protecionismo e teorias do laissez faire (como na China). O mundo conheceu também experiências socialistas e comunistas de vário s tipos: familiar, religioso, militar, o socialismo de Estado (no Egito), cartéis monopolistas, e organizações de consumidores. Mas embora tenha havido em toda parte privilégios de mercado urbano, companhias, corporações e toda sorte de diferenças legais entre a cidade e o campo, o conceito de cidadão e o de burguesia não existiram fora do moderno Ocidente. Do mesmo modo, o proletariado como classe não poderia ter existido, pois não existia uma organização racional do trabalho livre sob disciplina metodizada. As lutas de classe entre as parcelas credoras e devedoras; proprietários rurais e sem terra, servos ou meeiros; interesses comerciais e consumidores ou senhores de terras existiram em toda parte nas mais diversas combinações. Mas mesmo as lutas medievais entre empreiteiros e seus trabalhadores existiram, noutros lugares, apenas no começo. O atual conflito entre o empreendedor industrial de grande escala e os trabalhadores livres era totalmente ausente. E por isso, não poderia haver os problemas com o socialismo.
Assim, numa história universal da cultura, mesmo de um ponto de vista puramente econômico, não é, em última análise, o desenvolvimento da atividade capitalista como tal, diferindo nas diversas culturas apenas quanto à forma: o tipo aventureiro, o capitalismo do comércio, da guerra, da política ou da administração como fontes de lucro e que é o ponto chave. É antes a origem desse sóbrio capitalismo burguês com sua organização racional do trabalho. Ou, em termos de história da cultura, o problema é o da origem da classe burguesa ocidental e suas peculiaridades, um problema que está com certeza estritamente ligado ao da origem da organização capitalista do trabalho, embora não se trata da mesma coisa. Pois os burgueses como classe existiam antes dó desenvolvimento das modernas formas peculiares do capitalismo, embora de fato, apenas no hemisfério ocidental.
À primeira vista, a forma especial do moderno capitalismo ocidental teria sido fortemente influenciada pelo desenvolvimento das possibilidades técnicas. Sua racionalidade é hoje essencialmente dependente da calculabilidade dos fatores técnicos mais importantes. Mas isso significa basicamente que é dependente da ciência moderna, especialmente das ciências naturais baseadas na matemática e em experimentações exatas e racionais. Por outro lado, o desenvolvimento de tais ciências e das técnicas que nelas se apóiam recebe, agora importante estímulo dos interesses capitalistas quanto a suas aplicações econômicas práticas. É verdade que a origem da ciência ocidental não pode ser atribuída a tais interesses. O cálculo, mesmo com decimais, e a álgebra, foram adotados na índia, onde o sistema decimal foi inventado; mas seu uso foi desenvolvido apenas pelo capitalismo no Ocidente, pois na índia isso não levou à moderna aritmética e contabilidade. Nem podemos dizer que as origens da matemática e da mecânica tenham sido determinadas pelos interesses capitalistas. Mas a utilização técnica do conhecimento científico, tão importante para as condições de vida da massa do povo, foi certamente incentivada pelas considerações econômicas, que lhe eram extremamente favoráveis no mundo ocidental. Esse incentivo, porém, derivava das peculiaridades da estrutura social no Ocidente. Devemos mesmo perguntar de qual parte de tais estruturas derivava, uma vez que nem todas poderiam ter sido da mesma importância.
Entre os fatores de importância incontestável estão as estruturas racionais das leis e da administração, pois que o moderno capitalismo racional não necessita apenas dos meios técnicos de produção, mas também de um sistema legal calculável e de uma administração baseada em termos de regras formais. Sem isso, o capitalismo aventureiro e de comércio especulativo e todo tipo de capitalismo politicamente determinado seriam possíveis, mas não o empreendimento racional da iniciativa privada, com capital fixo e cálculos certeiros. Tais tipos de sistemas legais e de administração, num grau relativo de perfeição legal e formal, têm sido disponíveis para a atividade econômica apenas no Ocidente. Devemos pois perguntar de onde se originou esse sistema legal. Entre outras circunstâncias, o interesse capitalista, por sua vez, sem dúvida contribuiu para preparar o caminho à predominância do direito e, à administração a de uma classe de juristas especialmente treinados na legislação nacional, embora não tenha sido o único nem o principal. Forças bem diferentes atuaram no seu desenvolvimento. E porque os interesses capitalistas não fizeram o mesmo na índia ou na China? Porque lá o desenvolvimento científico, artístico, político ou econômico não tomou o mesmo caminho de racionalização que é peculiar ao Ocidente? Porque em todos os casos acima o problema é o racionalismo peculiar e específico da cultura ocidental. Ora, nesses termos, pode-se entender coisas muito diferentes, como a discussão a seguir mostrará repetidamente. Temos, por exemplo, a racionalização da contemplação mística, atitude que, vista sob outro prisma da vida, é especialmente irracional, e temos também como temos as racionalizações da vida econômica, da técnica, da pesquisa científica, do treino militar, do direito e da administração. Além disso, cada um desses campos pode ser racionalizado em termos consoantes com valores últimos e finalidades muito diferentes, e o que é racional de um certo ponto de vista, poderá ser irracional de outro. Racionalizações dos mais variados tipos têm existido em vários setores da vida, em todas as áreas da cultura. Para caracterizar suas diferenças de um ponto de vista da história da cultura é necessário saber quais setores foram racionalizados e em que direção. Por isso, nossa primeira preocupação é desvendar e explicar a gênese e a peculiaridade do racionalismo ocidental e, por esse enfoque, sua forma moderna.
Cada tentativa de explicação deve, reconhecendo a importância fundamental do fator econômico, tomar em consideração, acima de tudo as condições econômicas. Mas ao mesmo tempo, não se deve deixar de considerar a correlação oposta. E isso porque o desenvolvimento do racionalismo econômico é parcialmente dependente da técnica e do direito racionais, mas é ao mesmo tempo determinado pela habilidade e disposição do homem em adotar certos tipos de conduta racional prática. Quando tais tipos de conduta têm sido obstruídos por obstáculos espirituais, o desenvolvimento da conduta econômica racional encontrou também séria resistência interna. As forças mágicas e religiosas e as idéias éticas de dever nelas baseadas têm estado sempre, no passado, entre as mais importantes influências formativas da conduta. Nos estudos aqui coletados, ocuparemos-nos de tais forças.
Dois ensaios anteriores foram colocados no início, como tentativa de abordar um ponto importante do problema que é geralmente mais difícil de ser apanhado: a influência de certas idéias religiosas no desenvolvimento de um espírito econômico, ou o ethos de um sistema econômico. Nesse caso estamos lidando com a conexão do espírito da moderna vida econômica com a ética racional da ascese protestante. Assim, tratamos aqui apenas de um lado do encadeamento causal. Os estudos posteriores sobre Ética Econômica das Religiões Mundiais tentam uma visão geral das relações entre as mais importantes religiões, a vida econômica e a estratificação social de seu meio, para seguir ambas as relações causais até onde for necessário para achar pontos de comparação com o desenvolvimento ocidental.
Só desse modo se pode tentar uma avaliação causal daqueles elementos da ética econômica das religiões ocidentais que as diferenciam das outras, na esperança de obter ao menos um grau tolerável de aproximação. Daí tais estudos não terem a pretensão de serem análises culturais completas, ainda que breves. Pelo contrário, enfatizam propositalmente, em cada cultura, os elementos que as diferenciam da civilização ocidental. São eles, pois, orientados definitivamente para os problemas que parecem importantes para a compreensão da cultura ocidental desse ponto de vista. Com tal objetivo em mente, não seria possível qualquer outro procedimento. Mas, para evitar mal entendidos, devemos dar uma ênfase especial às limitações do nosso propósito.
Por outro lado, os não iniciados devem ser, no mínimo, alertados para não exagerar a importância de tais investigações. O sinólogo, indólogo, o semitólogo ou egiptólogo não encontrarão aqui, logicamente, nenhuma novidade. Esperamos apenas que não encontrem nada de definitivamente errado nos pontos essenciais. O autor não sabe até que ponto um não especialista pôde se aproximar desse ideal. É bem evidente que qualquer um que seja obrigado a confiar em traduções e, mais ainda, no uso e avaliação de fontes monumentais, documentais ou literárias, deve se valer de literatura específica, muitas vezes controvertida, e cujos méritos não é capaz de avaliar corretamente; tal escritor só pode achar modesto o valor do seu trabalho. E, ademais, a quantidade de traduções disponíveis de fontes verdadeiras (isto é, de inscrições e documentos) é ainda muito pequena, especialmente em relação à China, em comparação com tudo o que existe de importante. De tudo isso se depreende o caráter decididamente provisório destes estudos, especialmente das partes relativa à Ásia. Apenas o especialista tem competência para um julgamento definitivo. E naturalmente, os presentes estudos foram escritos apenas porque ainda não foram feitos estudos especializados com este intuito particular e deste particular ponto de vista. Eles estão destinados a ser ultrapassados, num sentido muito mais importante, digamos, que um trabalho científico. Mas uma invasão de outros campos específicos, por mais reprovável que possa ser não pode ser evitada num estudo comparativo; e disso se devem assumir as conseqüências, resignando se às grandes dúvidas quanto ao grau de sucesso alcançado.
A moda e o zelo dos literati nos faz considerar, hoje, o especialista como dispensável, ou relegá-lo à posição subalterna de observador. Quase todas as ciências devem algo aos diletantes, com freqüência pontos de vista muito valiosos. O diletantismo porém, como princípio, seria o fim da ciência. Aquele que tiver vontade de ver pode ir ao cinema, embora hoje lhe seja também oferecido, fartamente, o presente campo de investigação na forma literária. Nada está mais longe destes estudos, profundamente sérios, que tal atitude. E posso acrescentar, quem quiser ouvir um sermão, que vá a um convento. _A questão do valor relativo das culturas aqui comparadas, não recebe uma palavra sequer. É bem verdade que os caminhos do destino humano só podem amedrontar a quem dele observa apenas um segmento. Mas será oportuno que guarde para si a esses pequenos comentários pessoais, como se faz à vista do mar ou de montanhas majestosas, a menos que se ache com vocação e capacidade para lhes dar expressão artística ou forma profética. Em muitos outros casos, a volumosa conversa sobre intuição nada mais faz senão ocultar uma falta de perspectiva em relação ao objeto, que merece o mesmo julgamento que a semelhante falta de perspectiva para com o homem.
É necessária uma justificativa para o fato de não ter sido utilizado o material etnográfico numa extensão compatível com o valor que sua contribuição naturalmente mereceria em qualquer investigação profunda, especialmente quanto às religiões asiáticas. Tal limitação não foi apenas imposta pelo restrito potencial humano de trabalho. A omissão pareceu nos permissível por estarmos aqui, necessariamente, tratando da ética religiosa das classes que foram as vigas mestras da cultura em seus respectivos países. O que interessa é a influência que sua conduta teve. É bem verdade que esta só pode ser completamente conhecida em todos os detalhes quando comparada com a etnografia e com o folclore. Devemos pois admitir expressamente e enfatizar que essa é uma falha a que o etnógrafo porá, legitimamente, objeções. Espero contribuir de algum modo para o preenchimento dessa lacuna, com um estudo sistemático da Sociologia da Religião. Tal empreendimento teria extrapolado os limites desta investigação e de seu propósito circunscrito. Ela teve de se contentar em trazer à luz os pontos de comparação com as nossas religiões ocidentais, tanto quanto o possível.
Por fim, podemos fazer referência ao lado antropológico do problema. Quando achamos, repetidamente, mesmo em setores da vida aparentemente independentes, que certos tipos de racionalização se desenvolveram no Ocidente, e só aqui no Ocidente, seria natural suspeitar que a razão mais importante das diferenças estivesse na hereditariedade. O autor admite estar inclinado a pensar que a importância da hereditariedade biológica seja muito grande. Mas apesar dos notáveis achados da pesquisa antropológica, não vejo, até o presente, como medir, exata ou aproximadamente, quer a extensão, quer, sobretudo, a forma de sua influência no desenvolvimento aqui investigado. Deve ser uma das primeiras tarefas da investigação sociológica e histórica analisar todas as influências e relações causais que possam ser explicadas satisfatoriamente em termos de reações ao meio ambiente. Só então, e quando a neurologia e psicologia raciais comparativas tiverem progredido além dos atuais e de certo modo promissores estágios, poderemos esperar por uma probabilidade de resposta satisfatória para essa questão. Por ora, essa condição me parece não existir, e um apelo à hereditariedade envolveria assim uma renúncia prematura à possibilidade de um conhecimento atingível agora, e deslocaria o problema para fatores ainda desconhecidos no presente.
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